Por Sonia Coelho*
Originalmente publicado no Brasil de Fato
2020, um ano inominável. Uma pandemia em um país com um governante fascista e genocida. Uma classe trabalhadora saqueada de seus direitos e condições de vida. A pandemia encontrou a classe trabalhadora, sobretudo as mulheres e a população negra, já imersa em condições de precarização da vida, promovidas por um plano de austeridade dos governos Temer e Bolsonaro.
Somamos mais de 180 mil mortos pelo coronavírus, enquanto Bolsonaro e seu Ministério da Saúde militarizado desprezam a vida da população. Bolsonaro é negacionista, desdenha e faz politicagem em cima da vacina. Ignora-se a emergência sanitária e a premência de salvar vidas. É preciso que a sociedade brasileira atribua ao governo Bolsonaro a responsabilidade por tantas mortes que poderiam ter sido evitadas.
E não é só isso. A pandemia apenas iluminou o fosso da desigualdade onde se encontra a imensa maioria do nosso país. Hoje o número de pessoas desempregadas já chega a 14 milhões, sendo elas em maioria mulheres, pessoas negras e jovens. Gente que luta para sobreviver, vivendo de bico em bico. A pandemia nos mostrou que perante crises como esta, um Estado forte e impulsionador de políticas públicas é fundamental.
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Enquanto a população padecia do medo e de incertezas, buscava respostas e conforto para suas inquietações, o governo Bolsonaro fazia a reunião ministerial que veio a público por denúncia de Sergio Moro. Entre outras estratégias de desmonte do Estado, o ministro do meio ambiente propôs: “vamos aproveitar que todos estão voltados para a pandemia e passar a boiada” – ou, em outras palavras, flexibilizar leis contra a classe trabalhadora, ofertar vantagens e leis para grileiros, aprovar mais venenos para o agronegócio e desmontar políticas públicas que ainda resguardavam em algum grau a preservação da natureza brasileira.
O Brasil termina 2020 contabilizando a maior destruição e irresponsabilidade de um governo com o meio ambiente, desde a destruição das florestas e do pantanal pelo fogo de criminosos, até invasão de terras indígenas. E assim como no campo, na cidade mesmo em plena pandemia os despejos do povo pobre e sem-terra não cessou, em ações perversas de assassinatos de lideranças sem-teto, e apoio criminoso à especulação imobiliária.
Também ficou nítido nesse período de isolamento social que a economia é muito mais que mercado, comércio, números. A economia que sustenta a vida é construída nas relações cotidianas. É um trabalho ocultado pelo capitalismo para que as mulheres continuem fazendo-o de forma gratuita e sem ser considerado como trabalho.
Pesquisas sobre a vida na pandemia demonstraram que as mulheres não pararam de trabalhar, pelo contrário: ficaram mais sobrecarregadas (inclusive sugerimos a leitura dos resultados da pesquisa “Sem Parar: o trabalho e a vida das mulheres na pandemia”, realizada pela SOF e pela Gênero e Número). Quando tudo para, são as mulheres, principalmente as negras e pobres que não podem parar, porque a vida e a necessidade do cuidado são permanentes.
Também a violência contra as mulheres, que já crescia nesse ambiente de misoginia e racismo cultivado e reforçado pelo bolsonarismo, aumentou com o isolamento social, que deu mais centralidade ao ambiente doméstico.
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Para a maioria da população brasileira, o racismo não dá trégua. Testemunhamos a violência policial, os extermínios, o colonialismo e misoginia que também resultaram nas mortes de meninas e meninos, homens e mulheres negras. Emilly e Rebeca Santos, Miguel Otávio, João Alberto Freitas, são alguns dos nomes que perdemos. No último mês, o assassinato da vereadora Marielle Franco completou mil dias sem respostas.
Se as violências não pararam, as resistências também não!
O ano de 2020 começou com muito fôlego. As mulheres abriram o calendário de lutas com o 8 de março, somando mais de cem atos por todo o Brasil em que a principal palavra de ordem era “Fora Bolsonaro”.
Com a pandemia, reprogramamos as lutas para os ambientes virtuais, ocupando redes sociais, fazendo atos virtuais, festivais, panelaços, buzinaços. Sabemos que nesses processos muitas companheiras não conseguiram acompanhar da mesma forma, porque é dado que parte das mulheres da periferia e do campo não possuem acesso à internet, ou possuem com muitas dificuldades, marcando mais um aspecto da desigualdade. Por isso, buscamos alternativas para estar juntas, fazendo atividades de formação e mobilização mais acessíveis para as companheiras.
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Foram muitas as pressões com os pedidos de impeachment do governo Bolsonaro. Hoje já se contabiliza mais de 56, com assinaturas de mais de mil entidades e movimentos. São ações contra a saúde coletiva, crimes de responsabilidade, ameaças à democracia, obstrução de justiça e tantos outros. Rodrigo Maia, um verme passivo na presidência da Câmara, engavetou cada pedido.
Em meio ao caos econômico, social e na saúde, e à fome rondando os lares, foram os movimentos populares que lutaram pelo auxílio emergencial e, ao mesmo tempo, organizaram a solidariedade. Com trabalho militante e compartilhado, fizeram chegar cestas básicas às famílias mais vulneráveis. Também houve luta política nas ruas por democracia e contra o racismo, em atos simbólicos, bandeiraços e intervenções em diversas cidades que afirmaram que vidas negras importam!
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Eleições e reorganização das cartas no jogo da direita
As eleições municipais vieram como mais uma possibilidade de discutir amplamente os rumos do país, o direito à cidade e os projetos de sociedade em disputa.
Bolsonaro foi parcialmente derrotado, pois seus candidatos nas principais cidades perderam. No entanto, sua base de apoio de direita cresceu. A propaganda da mídia é de que a esquerda saiu derrotada e que venceu o centro e a moderação. Mas o que chamam de centro é a velha direita de sempre: MDB, PP, PSDB e outros que elegeram Bolsonaro e coincidem no programa neoliberal.
Esse não foi um ano de eleições apenas no Brasil. A derrota de Trump nos EUA foi amarga para Bolsonaro, e é parte do caminho de enfraquecer a extrema-direta nas Américas.
Também não se pode negar o aumento das candidaturas de mulheres e negras, e eleição de várias destas mulheres negras; um aumento de 275% das candidaturas trans, com destaque para Erika Hilton, mulher trans e negra, a vereadora mais votada para a câmara de SP, e Duda Salabert, a mais votada em Belo Horizonte. Essas e outras candidaturas foram vitoriosas mesmo sofrendo com a violência, o machismo, o racismo e a desinformação dos discursos de ódio da direita. Por isso, seguimos na luta, por mais poder popular e por projetos feministas e antirracistas para as cidades.
Fôlego para 2021!
Um grande desafio para 2021 será incidir nesta luta sanitária para que toda a população tenha o direito à vacina como forma de preservar a vida, assim como a luta contra a privatização e o desmonte do SUS que está em curso.
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Nosso aprendizado nesta pandemia foi de que as redes sociais são muito importantes, mas são um território dominado pela direita e pela lógica de mercado. Para a esquerda, é urgente pensar práticas que subvertam esses mecanismos de vigilância, fazendo luta política nas redes, ruas e roçados.
Precisamos fortalecer a organização feminista e de esquerda nas ruas para ampliar ao máximo a organização da classe trabalhadora.
Somente com uma ampla mobilização popular, a campanha por Fora Bolsonaro poderá paralisar a agenda neoliberal. Sabemos que a disputa eleitoral institucional não é suficiente para derrotar o bolsonarismo.
Para isso, precisamos enfrentar o desafio da unidade com um programa de reconstrução do país, numa perspectiva popular feminista, antirracista, antiLGBTfobia, que atue para construir a soberania popular, tendo a igualdade, a soberania alimentar e a agroecologia como princípios.
E, para tomarmos fôlego para 2021, é impossível deixar de saudar com alegria a retomada popular da democracia na Bolívia, a eleição vitoriosa na Venezuela, a população chilena que conquistou nas ruas um processo constituinte com paridade de gênero, e, por fim, a todas as mulheres argentinas que mais uma vez tentam aprovar a Lei de Legalização do Aborto no Senado. Nosso feminismo é internacionalista, e por isso nos sentimos parte de todas essas vitórias pela vida e autonomia das mulheres, pela soberania dos povos!
A luta feminista segue em marcha!
*Sonia Coelho é assistente social e faz parte da equipe da SOF Sempreviva Organização Feminista