Um total de 26 mulheres, dentre agricultoras, quilombolas do Vale do Ribeira, além de oito integrantes de grupos de consumo e técnicas em agroecologia e economia solidária, participaram do curso “Economia feminista e Agroecologia”, realizado na cidade de Peruíbe, litoral sul de São Paulo, entre os dias 6 e 9 de novembro. Estiveram presentes mulheres das cidades de Peruíbe, Miracatu, Itariri, Itaoca, Barra do Turvo, São Paulo, São Carlos, Taboão da Serra e Santo André.
A relação das mulheres com seus próprios corpos foi o tema da primeira atividade do curso, no dia 6. As discussões a partir da dinâmica inicial mostraram como os corpos das mulheres são apropriados pelos homens em espaços públicos ou privados e como a imposição de padrões de beleza supostamente ideais para as mulheres pela sociedade e pela mídia afeta o olhar que temos sobre nossos próprios corpos. Os métodos contraceptivos e de reposição hormonal e a relação destes com a saúde e a autonomia das mulheres sobre seus corpos foram outro tema discutido.
“Às vezes a gente não gosta de uma cicatriz, mas a cicatriz tem uma história, nossa história. Nosso corpo é como ele é. Nosso rosto tem a marca dos nossos antepassados e do nosso fazer. Tem gente que gasta horas na academia para ter panturrilha; a gente tem a panturrilha forte porque é trabalhadora rural e às vezes a gente tem vergonha, não gosta.”
Autoorganização das mulheres para enfrentar a violência
Já na manhã do dia 7, o foco dos debates foi a violência contra a mulher. O tema foi debatido em quatro grupos, que conversaram sobre o que é a violência contra a mulher, como ela se manifesta e o que se pode fazer para combatê-la. As discussões dos grupos foram apresentadas em formato de programa de TV ou rádio. Nas apresentações, foi muito recorrente o discurso de que a violência pode ocorrer de diversas formas e em diversos lugares – como a casa, o trabalho, o transporte público e a rua.
As participantes também apontaram diversas ações necessárias para o enfrentamento à violência contra as mulheres. As principais indicações foram: perder o medo de agir, organizar-se mais em coletivos, pensar juntas em suas comunidades na melhor forma de superar cada caso específico de violência e pautar regularmente esse tema nos espaços de decisão política.
“É difícil a gente pensar o que fazer sobre a violência contra as mulheres nas nossas comunidades, Dá uma tristeza só em pensar. Mas um começo é o que estamos fazendo aqui, é a gente fala, e ter o acolhimento das companheiras, ouvir sem julgar, sem culpar, se sentir parte de um coletivo. Isso nos dá muita força.”
Agroecologia como alternativa
Na tarde do dia 7, a conversa abordou as práticas agroecológicas na produção de alimentos. As mulheres recordaram como esses métodos sempre estiveram presentes nas formas tradicionais de fazer agricultura de suas famílias e como esse conhecimento foi parcialmente perdido com o passar do tempo e a adoção de métodos industriais na agricultura. A partir dessa discussão, as mulheres se dividiram em grupos com a tarefa de escrever receitas caseiras que utilizam em seu cotidiano, seja na agricultura, na culinária ou na elaboração de remédios a partir de plantas medicinais. Ao fim, as receitas foram apresentadas para todas as participantes.
Esse debate se complementou na prática com a visita no dia 8 ao sítio da agricultora Bete, na cidade de Miracatu, onde primeiro foi feito uma formação sobre plantas medicinais e sementes com as participantes do curso e agricultoras da vizinhança. Em uma roda de conversa, ela contou sobre sua trajetória como agricultora, que toca o sítio sozinha com o filho adolescente, bem como de suas experiências também na criação de abelhas. A prática se complementou com um mutirão no qual as mulheres ajudaram Bete a implementar uma horta com um modelo de cultivo de consórcio, no qual diversas espécies são plantadas em canteiros com formato de mandala (circular).
A experiência gerou discussões sobre a quebra de alguns padrões colocados pela agricultura convencional na vida dos agricultores, como os plantios de monocultura, em grandes áreas e em canteiros lineares. Também foi discutida a importância de manter a tradição do trabalho em mutirão e como esta prática está relacionada com outras tradições do meio rural, ligadas à música, à culinária e à dança. Simultaneamente ao mutirão de preparo do solo e plantio, aconteceram duas rodas de conversa: uma sobre plantas medicinais e outra sobre adubação verde.
Na tarde desse dia, a discussão foi acerca das Cadernetas Agroecológicas, uma forma de sistematizar a produção das agricultoras e/ou artesãs, que busca visibilizar e quantificar a contribuição delas na economia. Através da dinâmica nesse espaço, as mulheres que preenchem a caderneta compartilharam seus aprendizados com outras que ainda não preenchiam. Entre outros apontamentos, elas observaram com dados concretos que sua produção é muito maior do que imaginavam, visibilizaram sua contribuição econômica nas finanças da família e a economia que faziam pelo fato de serem agricultoras e não precisarem comprar muitos alimentos no mercado.
O dia se encerrou com uma visita ao mercado municipal de peixes de Peruíbe e ao espaço da Colônia de Pescadores da cidade, que é presidida pela primeira vez em sua história por uma mulher, Eliana Diniz. Conversando com Eliana e também com Adriana, que anima o fórum de comunidades tradicionais do Vale, as participantes do curso puderam e conhecer mais sobre a história e as lutas das mulheres caiçaras.
“Falando de como é ser mulher neste mundo dá uma angústia, mas daí eu faço um paralelo com a transição agroecológica. Como é a estratégia? Ir mudando aos poucos, plantar de outra forma, plantar adubo verde… Isso vai fazendo os agricultores enxergarem que é possível mudar. Do mesmo jeito é possível pensar uma transição para fora de uma sociedade patriarcal. Conversar, falar é uma solução para as nossas angústias, e com os homens é preciso refletir quando as situações acontecem, ainda que possa ter um constrangimento. É preciso combinar constrangimento e reflexão”.
Desafios da comercialização
No último dia do curso, uma dinâmica que tratava de quatro situações de venda diferentes – mercado institucional, feira, grupo de consumo e venda direta “de porta em porta” – permitiu às mulheres refletir sobre a construção social do mercado. Foram discutidos temas como o transporte, o associativismo, a precificação dos produtos, o acesso a documentos como a DAP (Declaração de Aptidão ao PRONAF – Programa Nacional da Agricultura Familiar), as relações pessoais dentro dos grupos, entre outros temas. A atividade gerou reflexões sobre as experiências das próprias mulheres com a venda de seus produtos, criando uma discussão sobre formas de resolver os problemas concretos que elas estavam enfrentando na pauta da comercialização.
Formação: caminho para o fortalecimento individual e coletivo
Na avaliação final, as mulheres expuseram a importância que espaços como o do curso têm para consolidar tanto sua organização no movimento de mulheres quanto no da economia solidária. Também falaram sobre a importância que estes momentos têm na construção delas como sujeitos individuais, que começam a se enxergar de outra forma, geralmente com menos timidez e mais confiança e auto estima. Destacaram por fim que esses momentos permitem a criação de redes mais sólidas entre os grupos de mulheres do Vale do Ribeira e a construção de relações entre elas baseadas na solidariedade e na construção coletiva do conhecimento.