Por Nilce Pontes Pereira, do Quilombo Ribeirão Grande e da coordenação nacional da CONAQ.
No dia 26 de fevereiro de 2019, na comunidade do bairro Bela Vista, no município de Barra do Turvo (SP), realizou-se o mutirão de práticas agroecológicas, que foi um mutirão de mulheres na terra da senhora Gasparina, agricultora familiar em processo de transição agroecológica. Fez parte da atividade o processo de limpar as suas plantas e, a partir disso, conversar sobre incremento de insumos orgânicos para melhoria da produção, com plantas de regeneração rápida com folhagem orgânica de adubação verde e técnicas de limpeza do espaço sem retirar a cobertura do solo. Dentro das nossas práticas, é importante levar em consideração a época de plantios, os ciclos lunares de cada variedade e a melhor forma de distribuir as variedades que se ajudam. O processo de sombreamento é um exemplo: banana caturra, banana prata, banana maçã, banana são tomé maranhão, mamão, abacate, os seus espaçamentos são de 4 ou 5 metros de distância um do outro. Nestes espaços vagos, pode-se colocar outras variedades de saídas rápidas, como mandioca, cará, taioba, milho… tudo isso depende da disposição do território.
A segunda atividade do Seminário foi desenhar a horta a partir do conhecimento de nós mulheres apreendidos no mutirão, com a produção da dona do espaço. Refletimos sobre a distribuição das variedades, como mandioca, feijão, abóbora e milho no mesmo espaço que outras variedades de produção. Cada uma pôde apresentar, durante as formações, espaços visualizados pelas mulheres aqui presentes dentro de suas capacidades.
Depois, demos início à discussão sobre a precificação da produção. Fizemos cálculos do tempo de serviço e tempo de preparo da produção. Em seguida, foi o momento de distribuição do conhecimento e de apropriação das técnicas atuais, como a produção de biofertilizantes naturais, com resíduos de cozinhas, ervas e plantas medicinais.
Na discussão dos ciclos lunares da produção, fizemos um levantamento dos produtos para cada variação de lua e de quais são nossas ferramentas de trabalhos (podem ser variadas, das primitivas ate as atuais).
Discutimos também sobre a forma como fazemos a inclusão das mulheres na educação e sobre a formação de nossos filhos. Foi um momento único, porque nosso dinamismo se dá na participação das crianças nas atividades agrícolas, onde eles aprendem e se desenvolvem com conhecimento prático, sem conceitos teóricos, pois acreditamos que as escolas têm esta função integrada com as famílias. Envolver as crianças no trabalho é uma tarefa cada vez mais difícil, pois é um campo onde encontramos dificuldade em dialogar, seja no espaço educacional ou religioso.
Também foi um tema a relação de cuidados de nós mulheres umas com as outras, devido às diferentes formas de pressão que suportamos nos nossos lares, como as psicológicas, as físicas. Refletimos sobre como interpretamos isso, se notamos notamos ou não essas pressões, e quais são elas. Ficou claro que muitas mulheres temos sido vítimas e nem notamos, pois faz parte de nosso dia-a-dia. A tarefa, agora, é: como conviver com ela ou mesmo acabar com estes comportamentos machistas que foram impostos a nós pelo patriarcado. Apresentamos nossas experiências com as ferramentas de trabalho e todas estavam dispostas a apreender mais e notar suas capacidades.
Este momento comum me fez pensar em minha própria realidade que em seguida relato. Faço aqui uma análise do que entendo como produção agroecológica feminista. Eu coloco aqui minha experiência e prática, meu aprendizado e como se deu essa interação sobre o tema. Apresentei um resumo do que entendo ser a agricultura familiar na visão feminista agroecológica. Nessa apresentação, relatei que nasci em um território que, para mim, entende-se como espaço sagrado, que é meu quilombo, Ribeirão Grande/Terra seca, no Município de Barra do Turvo, Vale do Ribeira, Estado de são Paulo.
Eu, Nilce de Pontes Pereira dos Santos, tenho 39 anos, sou nascida e criada no quilombo, na agricultura quilombola agroflorestal agroecológica com práticas e conhecimentos de alternância dos sistemas de coivaras. Sou tataraneta do fundador do quilombo Ribeirão Grande, o senhor Miguel de Pontes Maciel. Eu sei que o que aprendi com as práticas de produção agrícolas quilombola me foi transmitido pelas minhas ancestrais. Entre elas, estão minhas avós Josefa Xaviel da Rocha e Rosa Marques dos Reis Maciel, Maria de Paula Pereira, Angelina de Pontes Morato, a minha mãe Izaira de Pontes Maciel. Elas foram as minhas grandes inspirações em suas vivências e resistências nas culturas, no cuidado da saúde e fortalecimento das nossas religiosidades e nas práticas agrícolas agroecológicas – nome este que é novo para as comunidades quilombolas e, na sociedade, é mais conhecido pela sistematização do que foi feito e construído pra um alimentação saudável, seja ela no campo alimentar, espiritual ou físico.
Eu sempre fui ensinada a respeitar o meu território, sabendo que a partir deste espaço se constrói uma vivência e uma relação com o sagrado onde me fortaleço espiritualmente, tendo como base a produção de alimentos saudáveis sem o uso de agrotóxicos. Na minha identidade, tenho como elemento central o fogo, água e terra e, na produção, esses são elementos centrais no fortalecimento desta identidade como produtora agrícola quilombola, seja no meu espaço físico, meu corpo, minha mente. Hoje, muitos não entendem porque defendo tantos esses espaços físicos. Isso também só se dá por não terem construído esta relação direta entre o ser, o viver, o produzir. Minha produção basicamente se dá na construção de espaços de plantios, como a extensão das ervas e plantas medicinais, nos espaços agroalimentares que usamos também como ornamentação e nos produtos da produção artesanal como ferramentas agrícolas de trabalho.
Hoje, temos aqui e pelo mundo muitos estudos de produção agrícola que trazem claramente estas separações. Muitos quilombolas, assim como eu, não conseguem ter uma visão separatista dos elementos culturais e espirituais, pois sem terra não há produção, sem produção não há cultuação ao sagrado e sem cultuação não há vivência alimentar. A reprodução humana não terá seu significado se não se der a partir da vivência e do respeito aos elementos naturais. Cada um caracteriza de acordo com seus entendimentos, mas eu acredito muito no que falo e como vivo. Minha produção é composta de arroz, milho, feijão, mandioca, hortaliças em geral e hortifrúti.
Na Barra do Turvo, devido a sua formação geográfica, cria verdadeiros obstáculos para o acesso às terras habitáveis. Protegida pelas serras e banhada por rios de difícil acesso, aqui constituiu-se em uma importante área de refúgio para nós, a populações negras fugidas da escravidão. As dificuldades logísticas relacionadas a este posicionamento impõem dificuldades em relação à infraestrutura local e ao escoamento da produção. Estas pessoas da minha família viveram e vivem ainda hoje dessas produções de roças itinerantes, realizadas através do sistema de coivara e destinada ao autoconsumo, do extrativismo e criação, sendo realizado com esta mesma finalidade, e da criação de porcos, gado e animais de pequeno porte para venda.
As roças itinerantes por muito tempo foram a combinação entre cultivo de roça e criação de animais de pequenos portes. Fazia parte de um sistema de alternância de uso do solo. Os porcos eram criados soltos sobre as roças abandonadas, que chamamos de tiguera nas famílias quilombolas, alimentando-se do restoio ali existente. As novas roças eram realizadas do lado oposto do rio, para evitar que os porcos delas se alimentassem e/ou as pisoteassem. A “porcada”, como dizem, era comercializada através das trocas anualmente. Essa relação comercial possibilitava a obtenção de alimentos não produzidos no trabalho com a terra. Hoje esta realidade tem sido alterada, mas não por completo, devido às limitações, à criminalização de nossas práticas de produção e técnicas tradicionais de trabalho sociocultural ambiental. Algumas dessas atividades estão aqui ilustradas nestas fotos: