Por Maria Fernanda Marcelino*
Diante da pandemia do coronavírus, são crescentes as ações de solidariedade pelo Brasil. As mulheres, mais responsabilizadas por garantir os cuidados e a sustentabilidade da vida, estão na linha de frente: costurando máscaras para distribuição e para gerar renda combinadamente, fabricando produtos de limpeza artesanalmente e identificando, nas comunidades, as famílias que precisam de alimentos. A situação atual expõe as desigualdades no país e, por isso, exige respostas imediatas e saídas coletivas.
O capitalismo deixa a vida insustentável e isso não é de hoje. Por isso, a solidariedade sempre foi uma prática do povo e uma realidade das organizações populares, colocando a vida das pessoas e da natureza no centro. As mulheres, mais expostas ao trabalho informal e sobrecarregadas pelas inúmeras tarefas em jornadas de trabalho que parecem não ter fim, encontram em outras mulheres (vizinhas, mães, cunhadas, irmãs) a extensão de seus braços no cuidado dos filhos, na busca por cuidar da saúde, por conseguir remédios e outros itens para atender familiares enfermos, dependentes e idosos. As práticas de solidariedade misturam laços de família, amizade na vizinhança, organizações de bairro, culturais, entre outras. A solidariedade popular significa, muitas vezes, compartilhar tempo, trabalho, atenção ou recursos tão necessários para quem recebe, quanto para quem doa. Não é pontual, mas um processo continuado, e não isento de conflitos, de construção de resistências, sobrevivências e comunidade.
A organização popular é parte da nossa história, seja no campo ou na cidade. A partir das comunidades, dos territórios e dos comuns, suas ações materializam, ao mesmo tempo, a luta política e a garantia de condições dignas de vida. É como reivindicamos na Marcha Mundial das Mulheres: mudar o mundo para mudar a vida das mulheres, mudar a vida das mulheres para mudar o mundo. É através da organização popular que os direitos sociais são conquistados, com noções de direito que nascem junto com as ações convocadas pela sociedade civil.
A luta por direitos no Brasil
E assim, na trajetória do povo brasileiro, vivemos uma relação tensa com o Estado e sua história racista, elitista, patriarcal. Por vezes com mais conquistas de direitos, por vezes com mais autoritarismo. O processo de ampliação do Estado no sentido de responder às necessidades do povo não é linear, porque as estratégias de acumulação do capital se alteram, assim como a correlação de forças e nossa capacidade de organização e luta. Por isso, reivindicamos o controle social do Estado e a participação popular nas várias etapas da construção de políticas. Enquanto isso, suprimos parte de nossas necessidades através de relações que estão à margem da ação do Estado, criando formas associativas que visam, ao mesmo tempo, a participação política local e a proteção frente à doença, à velhice, ao desemprego, à invalidez, etc.
A construção do SUS e da previdência pública são exemplos de quando as práticas solidárias são incorporadas à lógica das políticas de Estado e aos direitos da população. Na previdência, o pacto geracional que alimenta o sistema de aposentadoria é exemplar: em vez do individualista “cada um por si”, os mais novos contribuem para que os mais velhos possam receber.
Enquanto os grandes empresários (do Brasil e de fora) forçam os cortes de direitos, as privatizações e os demais caminhos para o lucro, nós, dos movimentos populares, afirmamos a necessidade de políticas universais, para que toda pessoa tenha direito ao uma renda básica em que possa se apoiar em momentos de desemprego, assim como aposentadoria para todas as pessoas. Lembramos que o auxílio emergencial não está sendo garantido para todas que precisam, e que a intenção do governo é diminui-lo nos próximos meses.
A pergunta é: Quanto de solidariedade precisaríamos se o Estado assumisse seu papel de gestor de condições básicas de vida e como detentor de setores estratégicos e para a saúde de um país?
O marketing das grandes empresas não é solidariedade
O aprofundamento do Estado neoliberal nessa pandemia coloca em primeiro lugar as grandes empresas que gozam de plena proteção e saúde financeira e, mesmo assim, demitem para garantir que sua faixa de lucro não sofra nenhum arranhão, podendo mais tarde recontratar parte das pessoas com salários ainda mais baixos. Num Estado voltado para os direitos do povo certamente os níveis de risco para a vida que isso implica seriam bem menores do que estamos presenciando.
Para esses grandes empresários, a caridade é mais lucrativa do que o direito. Caridade é a ação pontual que mantém os atendidos dependentes de novas ajudas, enquanto o direito é o aporte universal que busca que as pessoas saiam da condição de necessitados e possam prover seu sustento.
As grandes empresas têm produzido uma forte propaganda televisiva, que anuncia e se orgulha das doações para o combate à pandemia. Suas “ações sociais” não se refletem nos direitos de seus trabalhadores, mas são um excelente marketing, além de serem revertidas em isenção de impostos. Solidariedade é quando se divide o que tem, e não quando se lucra muito doando um pouco.
Solidariedade em tempos de pandemia
Temos visto as ações de solidariedade dos movimentos sociais atuando com uma capacidade e capilaridade incríveis e eficientes, e, portanto, salvando vidas (como é o exemplo das organizações de Heliópolis, em São Paulo, de múltiplas iniciativas da campanha Vamos precisar de todo mundo, das ações que buscam garantir que os alimentos distribuídos nas periferias sejam produtos da agricultura familiar e camponesa).
São elas que estão garantindo dignidade e saúde para muita gente neste momento de crise humanitária, econômica e política. As ações trazem um forte componente autogestionário. São inovadoras, criativas, resilientes, mas partem sempre dos acúmulos históricos. A solidariedade tem classe, e nas suas práticas é inegável o envolvimento das mulheres e da população negra.
Essas ações de solidariedade enfrentam os desafios da pandemia do novo coronavírus e os tantos obstáculos logísticos e materiais que se colocam no caminho. Reinventam as práticas e as formas de construir a auto-organização popular, distribuindo informações sobre a covid-19 e garantindo as medidas de prevenção. Politizam a defesa da vida e reconstroem as possibilidades de fortalecer a organização popular para enfrentar não apenas a pandemia, mas o autoritarismo neoliberal do governo Bolsonaro.
*Maria Fernanda Marcelino faz parte da equipe da SOF Sempreviva Organização Feminista.