Por Sonia Coelho*
No mês de junho, nós da SOF Sempreviva Organização Feminista publicamos “São Paulo desigual: análises feministas sobre trabalho, gênero e raça”. É um estudo sobre o trabalho das mulheres em São Paulo, a partir de dados da PNAD Contínua de 2019 e de relatos de mulheres militantes. O assunto não começa nem termina nesse livro, e por isso decidimos falar mais sobre isso, aqui, na coluna. A desigualdade que acompanha a história de São Paulo se agudiza agora, nesse contexto de pandemia, onde a o lucro se coloca acima da vida.
Para viver mais, ter saúde e qualidade de vida, é preciso garantir direitos básicos: uma moradia adequada, alimentação saudável e suficiente, trabalho e renda, transporte de qualidade, acesso ao cuidado e à saúde. A saúde da população é um indicador fundamental para denunciar a desigualdade social em uma cidade.
A alta mortalidade por covid-19 em São Paulo atinge principalmente a população pobre, negra da periferia, marcada pela insuficiência destas condições.
O Mapa da desigualdade, pesquisa da rede Nossa São Paulo, apontou que é justamente em Moema e Jardim Paulista, bairros onde vive a elite paulistana com idade média de vida de 80 anos, que há menor falecimento por covid-19. Enquanto isso, os bairros do Grajaú, na região sul, e Cidade Tiradentes, na zona leste, têm menor expectativa de vida e são os que mais contabilizam mortos. Entre Moema e Cidade Tiradentes, há uma diferença de 23 anos na expectativa de vida.
A violência também retrata a desigualdade
São Paulo é uma cidade muito violenta. As altas taxas de homicídios da juventude negra e periférica são resultado, principalmente, da ação da polícia. A polícia admite que a abordagem é diferenciada para jovens da periferia e jovens de bairros de classe média, revelando seu caráter racista. A população trabalhadora está à margem de uma política pública de segurança. Ao invés de oferecer proteção para o povo, a segurança pública é patrimonial, está a serviço do capital e controla a classe trabalhadora.
A pesquisa da rede Nossa São Paulo “Viver em São Paulo: Mulher”² aponta que 62% das mulheres têm medo da violência em São Paulo e 33% têm medo de sair a noite, em uma cidade que não para. As mulheres jovens, negras e as mais pobres trabalham e estudam a noite. Outras tantas são trabalhadoras de serviços essenciais (como a Saúde) que funcionam à noite. Sem contar as que trabalham em bares, restaurantes e na educação, que têm que conviver cotidianamente com o drama do medo no ir e vir do trabalho e estudo. O direito ao lazer e entretenimento também é afetado por esse motivo: muitas vezes, as mulheres deixam de usufruir por medo de sofrer violências.
Essa mesma pesquisa revela que 38% das mulheres já sofreram assédio no transporte público. Os homens agem como se o corpo da mulher fosse algo público, principalmente o corpo das mulheres negras. Se uma mulher está na rua ou no transporte, é como se estivesse disponível, pois está no espaço público. Mas a casa é também um dos principais locais de violência e do feminicídio. Uma das coisas que garante que a violência continue acontecendo é a banalização e a justificação. O Brasil registra 180¹ estupros por dia, e a maioria dos casos acontece com meninas de até 13 anos. A violência nas ruas e nos transportes não é nova, mas é persistente e se amplia na medida em que o capitalismo patriarcal e racista se acirra deixando os homens mais à vontade para exercer o machismo e a violência . O neoliberalismo, que desmonta o Estado, desfaz também a responsabilidade e o sentido coletivo do combate à violência, e incentiva a indiferença da sociedade.
A gravidez na adolescência perpetua a desigualdade
Um levantamento da Unicef com dados do SUS³ revela que a gravidez na adolescência (15 a 19 anos) está cada dia mais concentrada em bairros da periferia. Em São Paulo, em 2017, a maioria dos nascidos vivos com mães adolescentes eram do Grajaú (996), Jardim Ângela e M’Boi (856), Cidade Tiradentes (589), Parelheiros (457) e Capão Redondo (608).
O mesmo estudo aponta que, de 2012 a 2017, a proporção de adolescentes negras com filhos aumentou em 11% nas periferias. Enquanto isso, os distritos como menos mães adolescentes são Pinheiros e os bairros do seu entorno.
As desigualdades são também sobre o acesso à informação, a métodos contraceptivos e a condições concretas para poder decidir por um aborto. Com a responsabilidade de manter seus filhos, muitas adolescentes abandonam o estudo. Muitas escolas também não as acolhem para que sigam estudando, e o Estado não oferece as vagas necessárias de creche para atender a população. Tudo isso, em conjunção, leva as adolescentes a se manterem em um ciclo de pobreza marcado pela divisão sexual e racial do trabalho.
É justamente onde temos mais gravidez na adolescência e mais pobreza que há menos política pública. A ausência do Estado aprofunda a pobreza. Vivemos em uma sociedade que faz apologia à maternidade mas não provê condições mínimas para exercê-la.
A lista de espera das vagas de creche, descrita no site da Secretaria de Educação do município de São Paulo, é a seguinte: 1287 no Grajaú, 716 no Capão Redondo, 1254 na Cidade Ademar. São as regiões mais pobres da zona sul, com maior número de população negra e maior déficit de creches.
Em toda a periferia de são Paulo há demanda não atendida, o que afeta diretamente a qualidade de vida e trabalho das mulheres.
A desigualdade tem base material
A organização da cidade de São Paulo reflete a profunda desigualdade de classe, raça e gênero. Em 2015, um levantamento da Secretaria Municipal de Igualdade Racial mostrou que a população negra concentra-se nos extremos das regiões leste e sul da cidade. Parelheiros possui 57,1% de população negra, M’ Boi Mirim 56%, Cidade Tiradentes 55,4%, Guaianases 54,6%, Cidade Ademar 52,1%. E Pinheiros, 7,3%.
O racismo organiza o trabalho e a geografia da cidade. Por viver tão distante das regiões centrais (onde se acumulam os empregos e serviços), o povo periférico, de maioria negra, tem uma rotina muito mais transtornada. As mulheres negras têm que conciliar o trabalho doméstico e de cuidados com o trabalho fora, passam longas horas no trajeto da casa para o trabalho e do trabalho para a casa, e perdem mais oportunidades de estudo, trabalho e lazer.
Esta forma de organização da cidade de São Paulo, baseada na segregação, perpetua a pobreza e as desigualdades de raça e gênero. A divisão sexual e racial do trabalho é responsável por alocar as mulheres negras em trabalhos mais precarizados, marcados pela informalidade, pela falta de direitos e pela pouca remuneração.
Não é só o baixo salário que piora a qualidade de vida nas periferias. A insuficiência de políticas públicas na cidade também faz isso, ao precarizar a saúde, a educação, os cuidados, o lazer e a cultura. Muitas vezes, então, quem garante boa parte disso nas periferias é a organização coletiva e comunitária. As mulheres se ajudam nos cuidados das crianças e dos idosos. E a juventude tem produzido muita cultura, com resistência e persistência, na ausência de um estado que promova ações e políticas públicas como via para a distribuição da riqueza.
Cidade justa
Em meio a tantas desigualdades, em uma cidade totalmente organizada para responder às necessidades do capital e da circulação de mercadoria, os movimentos sociais são organizados e renovados, mantendo a resistência e luta cotidiana para transformar a cidade. Há respostas à desigualdade sendo organizadas e trilhadas pelo movimento feminista, de saúde, moradia, cultura e tantos outros. Os movimentos são responsáveis diretos pela transformação da cidade. Basta olhar os equipamentos de saúde pública, educação, as moradias nos bairros. Nada disso foi construído porque o governo de plantão decidiu, mas porque teve luta popular, exigindo, reivindicando.
A urgência de garantir a vida, uma vida que valha a pena ser vivida, se evidencia nesse contexto de pandemia. Temos que olhar a cidade desde outra perspectiva: olhando cada território, os trabalhos e estruturas necessárias para manter a vida, que vem em primeiro lugar, e que é atacada pelo capital.
Os serviços coletivos e públicos se mostram fundamentais no enfrentamento ao coronavírus. Mais ainda, é fundamental a organização popular, a partir da suas lideranças e realidades, como em Paraisópolis. A solidariedade, o fortalecimento dos serviços públicos, a sociedade organizada. Estas são estratégias fundamentais para a superação dessa doença, mas também das desigualdades.
*Sonia Coelho é assistente social e integra a equipe da SOF Sempreviva Organização Feminista.