Este mês de outubro marca os quatro anos de existência da RAMA (Rede Agroecológica de Mulheres Agricultoras da Barra do Turvo) e de comercialização junto com a Rede Sampa de Grupos de Consumo Responsável na Grande São Paulo. São quatro anos de parceria entre campo e cidade! Essa articulação em rede surgiu de demandas de comercialização e escoamento de alimentos produzidos pelas mulheres auto-organizadas da Barra do Turvo. Os alimentos ofertados pela RAMA são produzidos com base na agricultura agroecológica e nos saberes e fazeres da agricultura tradicional familiar e quilombola.
Ao mesmo tempo, na cidade, grupos de militantes e ativistas (ComerAtivamente, CCRU, entre outros) já se articulavam em busca de alimentos agroecológicos e estavam se consolidando em redes. Não havia tanta ofertas de cestas agroecológicas como agora, e, por isso, era necessário todo um movimento para contatar agricultores e agricultoras, organizar a produção, pensar logísticas… Tudo isso para democratizar o acesso à alimentos saudáveis e livres de veneno, inclusive nas periferias, e para repensar o consumo, entendendo a alimentação como um ato político. Posicionando-se contras as grandes redes de supermercados que superfaturam os alimentos, um dos lemas da rede é: o que você alimenta quando se alimenta?
Por isso, as redes apostam na relação de compra direta, que paga o preço justo para as agricultoras, e também no trabalho coletivo, que reduz ao mínimo os custos da distribuição. É uma tarefa difícil nas grandes cidades, que exige comprometimento e vontade política. Foram muitas as reuniões ao longo desses quatro anos: detalhar a logística, identificar caixas de alimentos, criar acordos coletivos de funcionamento… Isso tanto para as mulheres agricultoras e quilombolas da RAMA como para os consumidores e consumidoras responsáveis.
“Tudo o que aconteceu nas nossas vidas, todo esse despertar é muito importante, eu sei que não só na minha vida, mas na de muitas mulheres e famílias que hoje, além de mandar para São Paulo, também aprendemos a comer melhor o que a gente tinha no quintal e não dava valor. E hoje nós damos”, disse a agricultora Izaldite. “Há quatro anos, quem imaginava que hoje a gente poderia estar mandando quatro toneladas de alimento para São Paulo? Imagina? Nós começamos de mansinho, devagarinho, e agora está essa enorme evolução das coisas, de mulheres, de venda, de conhecimento, de amizade”, continuou.
Os momentos mais comemorados, sem dúvida, foram os intercâmbios. Em São Paulo, recebemos as agricultoras em eventos, almoços, marchas, feiras e manifestações, e, em cada comunidade de Barra do Turvo, nos dividimos nas casas das agricultoras para aprender os jeitos de plantar e preparar os alimentos. Nossa amizade só cresce nesses convívios, e nos compromete ainda mais com o esforço de distribuir alimentos de qualidade e fortalecer a luta e manutenção dos modos de vida das comunidades tradicionais.
Letícia, do CAUS (Conexão Agroecológica Urbana Social), que participa da rede de consumidores, contou um pouco sua percepção sobre a relação criada: “o que acho mais significativo dessa participação é como está todo mundo sintonizado numa mesma vibração, no dia em que chegam os alimentos do Vale. É tipo o momento mais feliz do mês, é a concretização dessa rede”. “Era uma descoberta maravilhosa adentrar nos bairros, conhecer as mulheres, suas histórias de vida, seus conhecimentos tradicionais, suas técnicas de produção e os produtos belíssimos, super diversificados e particulares, culturalmente localizados. É uma rede de comercialização, mas é muito mais que isso: é uma rede de afeto, solidariedade, cooperação, amizades”, agregou Fabiana, do grupo de consumo ComerAtivamente.
Esse ano foi muito diferente. O ultimo intercâmbio, em janeiro, deixou muitas saudades. A agricultora Jane falou sobre a união em tempos de pandemia: “para mim, fazer parte da RAMA é motivo de vida nova. Acabou o tempo ruim! Mesmo passando por uma pandemia e estando distantes, mantemos o diálogo, passando energia positiva, forças e ajuda emocional de todas as partes. Perto ou longe, somos sempre unidas”.
O trabalho em campo foi interrompido em março, mas seguimos trabalhando em rede, mobilizando campanhas de solidariedade, acolhendo pedidos de companheiros comprometidos na causa de distribuir alimentos para muitas comunidades. O resultado desse trabalho é que, desde o início da pandemia, o volume das entregas da RAMA aumentou em quantidade de alimentos e na diversidade de pessoas que querem conhecer a rede e se alimentar dos frutos dessa luta. Grande parte deste volume de compras tem sido direcionado para ações de solidariedade na cidade. A comida é comprada por coletivos que distribuem esta comida gratuitamente para a população periférica, comunidades tradicionais, escolas que direcionam o alimento para as crianças que estão sem merenda, movimentos de moradia, imigrantes, entre outros.
Mais de 7 toneladas de alimentos da RAMA já foram distribuídos, e as campanhas continuam acontecendo. Se, por um lado, as e os consumidores da rede não podem encontrar as agricultoras, por outro, elas nunca estiveram tão presentes na cidade, na mesa de tantas pessoas. As ações também demonstram o compromisso dos grupos de consumo de fazer a comida chegar em quem mais precisa: a maioria das pessoas beneficiárias das campanhas são mulheres e pessoas negras.
Como as campanhas dependem de doações para seguirem acontecendo, muitos grupos já tem pensado em formas de lidar com as ações de solidariedade também após a pandemia, por saber que as condições de vida não irão melhorar tão rapidamente nessa situação de crise. Formas de financiamento coletivos mais recorrentes, campanhas de arrecadação e o compromisso de manter o preço justo são estratégias para que as famílias possam acessar permanentemente os alimentos, e que terão sempre mais força quando feitas coletivamente, fortalecendo a agroecologia enquanto movimento.
São quatro anos que nos permitem olhar para trás e ver muitos avanços, com companheirismo, auto-organização e respeito aos saberes e à natureza. E nos permitem, também, olhar para frente e ver, coletivamente e com nitidez, todos os desafios por enfrentar na luta pelo território, pela agroecologia, pelo feminismo, pelo antirracismo e pela soberania alimentar.
Um pouco dessa história está documentada nos materiais:
Mulheres quilombolas: territórios, identidade e lutas na construção de políticas públicas (2020) | leia
8 de março de 2020, lançamento da 5ª Ação Internacional da MMM em São Paulo (2020) | assista
Economia feminista: aprendendo com as agricultoras (2020) | assista
Práticas feministas de transformação da economia: autonomia das mulheres e agroecologia no Vale do Ribeira (2018) | leia
Caminhos da autonomia: agroecologia e feminismo no Vale do Ribeira (2018) | assista
O que é liberdade? Reflexões de mulheres do Vale do Ribeira (2017) | assista
Feminismo e agroecologia aproximando campo e cidade (2016) | assista
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