Por Nalu Faria*
Publicado originalmente no Brasil de Fato
Em 1972, em Pádua, na Itália, foi lançada uma campanha para exigir salários para o trabalho doméstico. A campanha era organizada pelo International Feminist Collective [Coletivo Feminista Internacional], que reunia grupos de mulheres da Itália, Inglaterra, França e Estados Unidos. O objetivo era organizar uma mobilização feminista internacional reivindicando que o Estado reconhecesse o trabalho doméstico como trabalho. Com a compreensão de que o trabalho doméstico possibilitava todas as formas de produção, esse grupo propunha que as donas de casa que faziam essa atividade deveriam ser remuneradas.
O registro dessa ação e algumas reflexões sobre ela estão no livro “O ponto zero da revolução”, de Silvia Federici, cuja primeira edição, em inglês, é de 2012. Sua recente tradução e publicação em português, uma parceria entre o Coletivo Sycorax e a Editora Elefante, contribuiu para a circulação da discussão sobre a remuneração do trabalho doméstico aqui no Brasil.
O livro reúne ensaios e artigos escritos ao longo de mais de 30 anos, e se inicia justamente com os textos que abordam o tema do salário para trabalho doméstico. Eles expõem a realidade da Itália onde Silvia vivia, a dinâmica social do pós-guerra na Europa, e refletem sobre como esse contexto moldava os desejos, as percepções e os temores das mulheres da geração de sua mãe.
Naquele momento, para as jovens de sua geração, uma vida dedicada ao trabalho doméstico, à família e à reprodução parecia algo intolerável. O encontro com o feminismo oriundo de organizações do campo marxista produziu um processo que foi além de se rebelar contra esse trabalho, chegando a uma compreensão da importância crucial do trabalho reprodutivo para a exploração capitalista. A dona de casa proletária foi reconceituada como sujeito da reprodução da força de trabalho.
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Silvia Federici, em sua trajetória, destaca o papel que sua reflexão sobre o salário para o trabalho doméstico teve nas análises que desenvolveu, posteriormente, sobre as mudanças na reprodução social a partir do neoliberalismo e a globalização. Destaca, ainda, a experiência de ter vivido na Nigéria, que ampliou sua percepção da realidade e novas perspectivas se apresentaram. Assim, novas compreensões foram formuladas até a incorporação e valorização da ideia de recuperação e fortalecimento dos comuns.
Com essa contextualização, quero chamar a atenção para a importância de olhar para a dinâmica histórica e política presentes na emergência de análises e propostas.
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No que se refere às análises do trabalho doméstico e sua relação com a produção capitalista, há um longo debate que partiu da busca do seu reconhecimento, de problematizar as insuficiências das análises econômicas, inclusive no marxismo, na análise da reprodução e seu papel econômico.
O que ficou conhecido como “o debate sobre o trabalho doméstico”, que envolveu várias ativistas e teóricas, como a também italiana Mariarosa Dalla Costa e a francesa Cristine Delphy, marcou os anos 1970. De lá pra cá, muitas contribuições se seguiram, ampliando as ferramentas de análise e luta feminista.
Destaca-se a elaboração do conceito de divisão sexual do trabalho, que tem como um resultado a problematização e ampliação do conceito de trabalho, processo que é parte da problematização da redução do conceito de economia no capitalismo (que se limita ao que tem valor de troca no mercado).
A economia feminista empreende a análise da totalidade das relações econômicas, considera a experiência das mulheres e tem como ponto de partida a satisfação das necessidades humanas. Portanto, amplia a noção de economia para além da esfera mercantil e monetária, incorporando toda a reprodução e o trabalho doméstico e de cuidados.
A reprodução é fundamental para a produção da vida. E isso avança para a necessidade de reconhecer a interdependência de todos os seres humanos em matéria de cuidados. A vulnerabilidade faz parte da condição humana, como algumas pessoas passaram a perceber durante a pandemia.
O capitalismo empurrou para as mulheres essa atribuição de lidar com a vulnerabilidade dos seres humanos e suas necessidades de cuidado. Ao mesmo tempo, desvalorizou essa responsabilidade e a colocou em situação de controle patriarcal. Essa atividade cotidiana não é reconhecida como trabalho e isso oculta seu nexo econômico com a produção.
São inúmeros os desafios frente a essa complexidade – dentre eles, o de não cair na “ética reacionária do cuidado”, ou seja, aquela que mistifica as mulheres como seres altruístas em permanente disponibilidade. Muitas vezes, esta visão é carregada de um essencialismo que ignora as construções sociais e é incompatível com a realidade.
Recuperar os termos desse debate travado com força nos anos 1970, considerando seu contexto, é provocar a reflexão sobre a situação que vivemos no Brasil hoje, a partir da realidade do trabalho doméstico e do cuidado, em diálogo com o debate atual sobre a renda básica. Essa é uma perspectiva fundamental para que as propostas de enfrentamento à emergência construam caminhos de transformação que coloquem a sustentabilidade da vida no centro.
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A profunda destruição e apropriação pelo mercado das condições materiais de existência da grande maioria da população nos exige debater sobre saídas, debater sobre como garantir condições básicas para uma vida digna.
Frente à ofensiva do mercado, emergem propostas contraditórias, que acabam por reforçar uma visão que trata grandes contingentes da classe trabalhadora como vulneráveis. Não são propostas de garantia plena, não consideram a população como sujeitos de direitos. Além disso, ancoram-se na continuidade de um ideal racista de família heteropatriarcal, ainda compreendida como o espaço para atender todo um conjunto de necessidades. Esta noção reforça a imposição da sobrecarga das mulheres, que continuam tendo seu tempo e seu trabalho tratados como as variáveis de ajustes que se esticam para conciliar as lógicas do mercado e do cuidado da vida.
O tema da renda básica também reposiciona essa questão, na medida em que coloca as donas de casa como grupo vulnerável. Esse é um debate que deve ser aprofundado, mas algumas questões já podem ser levantadas. A primeira é a de que a disputa por um paradigma de sustentabilidade da vida deve questionar a lógica de mercado, e exige atenção frente às falsas soluções. Isso é crucial neste momento, em que os significados do isolamento social e das relações familiares estão em destaque e em disputa.
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A pressão das políticas austericidas joga a reprodução ainda mais para a família, reconcentrando mesmo alguns aspectos que as políticas públicas haviam incorporado em alguma medida (por exemplo, a creche). Nesse ambiente, todas essas disputas rapidamente aceitam o debate da renda básica, mesmo que em detrimento de outras políticas sociais, em uma estratégia que pode ter efeitos retrógrados em relação a cortes de direitos e precarização da vida.
No Brasil, isso pode ser exemplificado pela proposta do governo Bolsonaro chamada “Renda Brasil”, que vem articulada com a destruição de serviços públicos e de políticas importantes, como o seguro defeso e a farmácia popular. Respostas como esta podem reforçar a fixação das mulheres mais pobres da classe trabalhadora como as únicas responsáveis pelo trabalho doméstico, que é realizado de forma solitária e confinada.
Para a esquerda, é fundamental fazer essa discussão. Temos ouvido intelectuais levantarem a remuneração do trabalho doméstico (das “donas de casa”) como uma possibilidade, com reflexões totalmente desvinculadas da situação atual das trabalhadoras domésticas no Brasil. Esta é a segunda maior ocupação das mulheres, com maioria de mulheres negras, em situação de informalidade e com salário médio inferior ao mínimo. É uma das ocupações onde as trabalhadoras foram mais afetadas pela pandemia.
Não basta falar de valorização do trabalho doméstico reduzindo-o a uma renda para as mulheres que, hoje, o fazem sem remuneração em suas casas, se uma parte da sociedade se desresponsabiliza todos os dias pelas atividades fundamentais – de limpeza, cuidado, comida – que sustentam suas próprias vidas, e as externalizam para trabalhadoras precarizadas.
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Frente à gravidade do aumento da pobreza, do desemprego e da fome, é preciso formularmos propostas emergenciais que envolvam a necessária garantia de renda. Mas essa garantia deve estar articulada com a desmercantilização da vida. Isso envolve a garantia dos direitos – água, moradia, saúde e educação pública – e também a reorganização do trabalho doméstico e de cuidado não apenas nas casas, mas no conjunto das dinâmicas da sociedade.
*Nalu Faria é psicóloga e coordenadora da SOF Sempreviva Organização Feminista e membro do Comitê Internacional da Marcha Mundial das Mulheres.