Por Tica Moreno, publicado originalmente no Brasil de Fato*
“Sem cuidado a vida não é possível”. “Isso que chamam de amor é trabalho não pago”. “O trabalho doméstico só é visível quando não é feito”. Essas frases são repetidas há décadas pelas feministas, e com a pandemia parecem ter encontrado mais eco. Ficou evidente que o cuidado é essencial, e também foram escancaradas as desigualdades que organizam e são organizadas pela forma como alguns grupos sociais cuidam e outros não.
Não é demais lembrar que são majoritariamente as mulheres – e entre elas, as mulheres negras – que cuidam. Todas as pesquisas sobre os afazeres domésticos e tempos para o cuidado em casa mostram isso, assim como os dados sobre o trabalho remunerado nos cuidados (trabalhadoras domésticas, cuidadoras, professoras de educação infantil, enfermeiras, etc). As mulheres pobres dedicam mais tempo ao cuidado que as mulheres ricas, e em média as mulheres dedicam muito mais horas que os homens. A informalidade, abusos e ausência de direitos predominam no cotidiano das trabalhadoras domésticas. Se, por um lado, o assunto está mais em pauta (mais gente fala sobre o cuidado e mais gente entende que existe uma crise), essa constatação não leva necessariamente a uma transformação nas formas de organização do cuidado.
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Em 2021, o Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos criou um grupo de trabalho para elaborar uma proposta de Política Nacional de Cuidados. Essa talvez seja a maior expressão de que o cuidado é uma agenda em disputa, e nem tudo o que se fala sobre o tema tem um sentido transformador.
A orientação do governo Bolsonaro e do Ministério em questão é a de reforçar a família – no singular – como núcleo da sociedade, como o lugar da moral e do cuidado. Propagandeiam fazer isso com pouco recurso, é evidente, porque a família absorve os custos da desresponsabilização do Estado pelos cuidados, que não investe em política de saúde, educação e alimentação. Assim, o cuidado pode dar nome a uma política neoliberal-conservadora, que desmonta os serviços públicos, reforça a responsabilização da família (ou seja, das mulheres) pela reprodução social e amplia a mercantilização – quem pode pagar consegue delegar o cuidado, geralmente com a contratação de trabalho precário.
Para transformar os eixos de desigualdade de gênero, raça e classe que organizam o cuidado, as políticas devem estar orientadas para a desfamiliarização e a desmercantilização.
Queremos “desfamiliarizar”, ou seja, fazer com que cuidar da vida não seja uma responsabilidade privatizada, nas famílias e, aí, realizada pelas mulheres. As saídas individuais e pelo mercado não apenas não são suficientes, como também ampliam a desigualdade e a exploração. Não só gênero, mas classe e raça são relações sociais fundamentais para compreender e transformar o cuidado.
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Queremos “desmercantilizar”, ou seja, que o cuidado fora da família não seja acessível só para quem pode pagar. Junto com isso, o reconhecimento e a valorização do trabalho doméstico e de cuidado precisam se articular com a reorganização e distribuição das responsabilidades, ampliando as infraestruturas públicas para o cuidado. Entre elas, a ampliação dos serviços públicos – como creches e centros de educação infantil, centros de cuidado de idosos, formação e organização do trabalho de cuidadores/as domiciliares, garantias de direitos trabalhistas para as trabalhadoras domésticas e cuidadoras.
Direito ao cuidado, direitos de quem cuida
Em outros países da América Latina, o cuidado está na agenda política a partir da afirmação de direitos. É o caso do debate atual no processo constituinte no Chile, e é também o discurso que orienta a construção de Sistemas Nacionais de Cuidado, por exemplo na Argentina. A proposta de criação de Sistemas Nacionais de Cuidado é muito inspirada no caso do Uruguai, que criou um sistema desse tipo em 2016. No caminho entre as propostas, desenho e implementação, os constrangimentos das políticas econômicas condicionam as possibilidades.
As companheiras do México, em um seminário sobre o tema em novembro de 2021, contaram que lá existe um processo em curso para construir um sistema nacional de cuidados. Concretamente, porém, não há ampliação de recursos prevista, fazendo esse sistema parecer, na verdade, um rearranjo das políticas e estruturas já existentes, que não estão orientadas a transformar as dinâmicas de desigualdade. A situação atual do Uruguai também acende um alerta: a política de cuidado foi diretamente impactada e reduzida com a eleição de um governo de direita neoliberal.
Se olhamos para a realidade brasileira, de ampliação da precarização, desmonte das políticas e o teto de gastos que impede o investimento em políticas públicas, fica evidente que não é possível construir políticas de socialização do cuidado que deem conta de garantir a ampliação da infraestrutura para o cuidado, a universalização do acesso e os direitos de quem cuida sem que isso esteja vinculado a uma mudança de orientação no projeto de país. Por isso, a visão da economia feminista sobre os cuidados propõe ir além dos marcos normativos e de políticas setoriais.
Economia feminista e sustentabilidade da vida: o que queremos?
A economia feminista é uma ferramenta de análise, luta e transformação. A partir dela podemos compreender não só as dinâmicas de desigualdade que organizam o cuidado, mas também a forma como toda a sociedade depende da imensa quantidade de trabalho e tempo que as mulheres dedicam todos os dias ao trabalho doméstico e de cuidados.
Uma crítica central da economia feminista é sobre a forma como esse vínculo entre a reprodução e a produção é ocultado no capitalismo. A imposição da maternidade, o ideal heteronormativo de família, a divisão sexual e racial do trabalho são forças que se movem para garantir a acumulação do capital. As mulheres, nas famílias diversas e comunidades, absorvem e amortecem conflitos gerados por vidas cada vez mais precárias e sociedades cada vez mais violentas.
É preciso ampliar o que é considerado trabalho e economia, considerando o conjunto das atividades, relações e trabalhos que sustentam a vida como atividades econômicas – mesmo quando estas não são remuneradas. O cuidado é uma parte do que é necessário para a sustentabilidade da vida. E, seguindo as propostas da economia feminista, o desafio é que as políticas de cuidado – fundamentais – se articulem a transformações sistêmicas no funcionamento econômico. Ou seja, que o cuidado e a sustentabilidade da vida informem as mudanças nas dinâmicas econômica e social.
As experiências de solidariedade da classe trabalhadora nos últimos dois anos indicam pistas e caminhos para reconstruir territórios e comunidades em que o cuidado da vida esteja no centro. Essas experiências podem inspirar e orientar políticas que estreitem a relação público-comunitário, confrontando a lógica da mercantilização da vida.
Queremos a universalização do direito à creche e educação infantil em horário integral. Mas, em cidades como São Paulo, o tempo que as trabalhadoras ficam todos os dias no transporte indo e voltando para o trabalho faz com que nem o período da creche integral seja suficiente. Nas periferias, uma rede econômica de cuidado se estabelece nas vizinhanças, antes e depois do horário da creche integral. A solução é abrir as creches às 5h, ou criar uma dinâmica socioeconômica na cidade baseada no investimento descentralizado, capaz de gerar empregos decentes mais perto de onde as pessoas vivem?
Para mudar a forma como o cuidado se organiza na sociedade, precisamos mudar tudo. Primeiro de tudo, precisamos tirar Bolsonaro e seus aliados conservadores do poder. Mas também precisamos construir e reconstruir muita coisa.
Precisamos de cidades com mais parques e praças, equipamentos públicos abertos para que o cuidado não se restrinja a casa, mas seja coletivizado e cada vez mais parte da socialização e da criação de comunidade. Restaurantes populares e cozinhas comunitárias podem garantir o acesso a alimentos saudáveis, a renda para agricultoras familiares e camponesas pela compra direta e reduzem o tempo de trabalho doméstico das mulheres.
Quais são as infraestruturas necessárias para apoiar o cuidado no campo, onde as mulheres são acionadas quando um parente da cidade fica doente? Quando revelamos as redes de cuidado e tudo o que é necessário para a sustentabilidade da vida, fica evidente nossa interdependência como pessoas, e também nossa ecodependência. É urgente defender os territórios e modos de vida das mulheres e povos que garantem o cuidado da vida humana, dos animais e das florestas diante de tanta destruição, privatização e financeirização da natureza. Mais tempo livre, o direito à terra, à moradia e à alimentação, saúde, saneamento básico, água e energia… São todas prioridades para uma economia a serviço da vida.
Reconhecer a importância do trabalho doméstico e de cuidado para a sociedade é fundamental, mas não basta. Com o feminismo, queremos reconhecer a contribuição econômica das mulheres, a vulnerabilidade dos seres humanos e suas interdependências. Os homens adultos, supostamente “independentes”, também são beneficiados direta e indiretamente pelo trabalho doméstico e de cuidados que a maioria das mulheres realiza todos os dias.
Queremos mudar as formas como as responsabilidades pelo cuidado são distribuídas: além de socializadas por políticas públicas, é preciso que os homens assumam o cuidado com as pessoas, que cozinhem, limpem e lavem, que estejam atentos e não apenas “ajudem”. Isso significa uma mudança na organização da vida coletiva e de cada um, e passa por reorganizar a economia rompendo com a lógica de acumulação e colocando a sustentabilidade da vida no centro.
*Tica Moreno é socióloga, integra a equipe da SOF e a Marcha Mundial das Mulheres
**A Coluna Sempreviva é publicada quinzenalmente às terças-feiras. Escrita pela equipe da SOF Sempreviva Organização Feminista, ela aborda temas do feminismo, da economia e da política no Brasil, na América Latina e no mundo. Leia outras colunas.
***Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.