Entrevista com Sônia Coelho, publicada na edição nº 434, março de 2013.
Nenhuma desigualdade entre as pessoas faz parte da natureza humana. Infelizmente, entre homens e mulheres ainda é possível constatar profunda discrepância de direitos, mesmo com alguns avanços consideráveis nos últimos anos. O dia 8 de março, Dia Internacional da Mulher, pode ser uma ótima oportunidade de discutir as questões de gênero e sinalizar esperança de igualdade. A assistente social Sônia Coelho, que milita na Marcha Mundial das Mulheres e integra a Sempreviva Organização Feminista (SOF), em São Paulo, nos propõe algumas pautas importantes para um debate frutífero.
- É possível falar em avanços nos direitos da mulher, nos últimos anos?Há uma parte importante de avanço que é o aumento do número de mulheres no mercado de trabalho. Isso é relevante do ponto de vista da autonomia econômica das mulheres. Segundo o IBGE (2011), as mulheres são 45,4% da população ocupada e 46,1% da população economicamente ativa. Por outro lado, persistem muitas desigualdades: as mulheres continuam ganhando menos, cerca de 70% do que os homens ganham, mesmo considerando que as mulheres hoje são mais escolarizadas do que os homens; ainda são exceção em cargos importantes e de decisão, embora seja crescente o número de mulheres em algumas ocupações; e a mulher continua em setores considerados femininos que são mais desvalorizados. No Brasil, o emprego doméstico é o principal mercado de trabalho principalmente para as mulheres negras. Apenas 28% têm carteira assinada e, destas, 72% ganham menos que o salário mínimo. Temos visto também que, em relação às mulheres negras, persiste a desigualdade de menores salários e ocupações mais desvalorizadas em relação às mulheres brancas.
- Além do avanço no mercado de trabalho, a legislação de proteção à mulher também avança?Em relação à proteção da mulher, hoje já existem leis que a amparam, como é o caso da Lei Maria da Penha, na questão da violência. Porém, apesar dos avanços e das leis, quando olhamos a realidade, vemos que ela é bastante complexa e que a lei sozinha é insuficiente para mudar a situação de violência contra a mulher. A respeito da Lei Maria da Penha, um avanço é o aumento das denúncias, mas o Brasil continua como um dos países considerados muito violentos, segundo o Mapa da Violência/2012. O Brasil, entre os 84 países do mundo pesquisados, consta como o sétimo em homicídios. Inclusive está em curso no Brasil uma Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) da violência contra a mulher, que o Senado propôs para investigar o descaso em relação a este tipo de violência que ocorre no Brasil. Existe uma lei importante de proteção à mulher, mas ela não está implementada integralmente. Observa-se, inclusive, uma grande omissão dos estados em relação à implementação dessa lei, seja na aquisição de equipamentos, seja na questão orçamentária para o combate à violência contra as mulheres. Conclui-se, então, que falta investimento para implementar a lei e colocar em prática uma política, primeiro de prevenção contra a violência e, depois, de atendimento integral à mulher vítima da violência. Porque os dados a respeito disso no Brasil são bastante alarmantes. Segundo pesquisa nacional da Fundação Perseu Abramo, a cada dois minutos, cinco mulheres sofrem violência.
- A mulher está no mercado, mas não abandonou as lides da casa. Então ela assume muitos papéis?As mulheres estão ocupando cada vez mais o mercado de trabalho, mas a sociedade ainda funciona como se todas as mulheres fossem donas de casa simplesmente, com tempo integral em casa. As mulheres continuam fazendo a maior parte do trabalho doméstico, do cuidado das crianças, dos idosos etc. Um dos grandes problemas, que inclusive tem sido motivo de discussão em períodos eleitorais, é a questão da ampliação do número de vagas em creches. No Brasil, somente 18% das crianças têm acesso à creche. Isso é um problema impeditivo para a mulher acessar o mercado de trabalho, e muitas vezes implica para a mulher tomar decisões com relação à vida profissional, redução de carga horária com redução de salário. Ou seja, a mulher acaba tendo que conciliar sua vida particular com a vida profissional. Além do que, isso ocasiona sobrecarga de trabalho. Existe outra discussão, que é a questão do tempo social. Quando a responsabilidade fica com a mulher, como se fosse obrigação somente dela, e fica com quase todo o seu tempo voltado para o trabalho, isso significa menos tempo para participação social, para o lazer etc. Temos o grande desafio de romper essa divisão sexual do trabalho. Hoje mais de um terço das famílias são sustentadas pelas mulheres. Os homens não são os únicos provedores. O trabalho doméstico e de cuidado precisa ser assumido na sociedade através das políticas públicas e pelos homens.
- Quando se observa o desequilíbrio das relações de gênero entre homens e mulheres, você diria que isso é um aspecto cultural enraizado?Nós vivemos a cultura patriarcal misógina. E temos visto que isso significa desigualdade, ideia de mercantilização do corpo e da vida das mulheres, mulheres consideradas objetos. Aliás, uma marca dos tempos atuais é a mulher considerada mercadoria. A prostituição é entendida por alguns como um trabalho, mas para nós é uma extrema exploração do corpo das mulheres, a banalização do corpo e da vida. Por outro lado, o que define as desigualdades entre homens e mulheres não são somente os aspectos culturais, mas também a base material, que é a desigualdade econômica, a sobrecarga de trabalho sobre a mulher, falta de acesso a espaços de decisão. Ou seja, as mulheres continuam sendo minoria ocupando postos de decisão do ponto de vista da participação política, ainda que tenhamos uma mulher na presidência. As mulheres continuam bem abaixo da posição que deveriam ocupar na representação perante a sociedade.
- As organizações de mulheres têm discutido também as esperanças para mudanças desse cenário?A gente continua acreditando que as mudanças vêm através da organização das mulheres. Porque a desigualdade entre homens e mulheres não é só um efeito desse modelo que vivenciamos. Ela é parte desse próprio modelo de sociedade que se nutre da opressão das mulheres. E acreditamos que nós, mulheres, temos um papel de nos mantermos organizadas, de nos mantermos na luta, exigindo mudanças, construindo consciência. Pois, apesar dos avanços, não podemos nos acomodar pensando que as coisas se resolvem por si mesmas. O que percebemos muitas vezes é que há avanços na sociedade, mas que também há retrocessos. E por isso é necessário seguir lutando para uma transformação geral da sociedade. As mulheres têm lutado e se organizado como sujeito político em todos os setores: no campo, na cidade, contribuindo para mudanças. E há pouco houve, por exemplo, uma conquista importante para as empregadas domésticas, que foi a aprovação da lei que torna iguais seus direitos aos direitos das outras classes trabalhadoras. Era uma luta de muito tempo e a vitória chegou: produto da luta das mulheres organizadas.
- Como você vê a abordagem dessa temática de gênero no âmbito curricular das escolas?Essa é uma questão que temos demandado aos governos municipais e estaduais, através das conferências de políticas para as mulheres. Precisamos introduzir essas questões das desigualdades, não só de gênero, mas também de raça e orientação sexual, nos currículos escolares. Da mesma forma, deve ser feita a análise da violência, a construção das mulheres como seres inferiores e homens superiores reproduzida na sociedade através dos meios de comunicação na família, inclusive na escola, que é um importante espaço socializador. Infelizmente, às vezes, ela ainda reproduz a desigualdade entre meninos e meninas, entre brancos e negros, ou não tem uma visão crítica sobre a questão da violência, da orientação sexual. É possível observar manifestações machistas e racistas por parte não somente dos alunos, mas também por parte do corpo docente. Os meninos são educados como se a violência fosse constitutiva da sua identidade masculina. Isso, muitas vezes, é tratado como se fosse natural, o que só reforça esse comportamento inadequado na sociedade. Nesse sentido, a educação é muito importante para fazer mudanças e educar pessoas livres de preconceitos. Para transformar a sociedade, precisamos transformar também a escola.
As mulheres e suas bandeiras
Hoje, encaramos desde a luta cotidiana contra a violência, que atinge diretamente as mulheres, mas também nos juntamos na luta pela soberania alimentar, pela economia solidária etc. Introduzimos todos os aspectos de luta no nosso calendário. Não são apenas especificidades. Há uma luta pela autodeterminação das mulheres, pelo direito de decidir se querem ou não ter filhos, pela saúde. Tudo isso é parte importantíssima da nossa agenda.
Temos lutado pela autonomia econômica, que não é só autonomia financeira, mas que junta a questão por renda e pelas políticas públicas. Enfocamos também a mercantilização do corpo das mulheres, que gera violência e visão das mulheres como objeto, a questão da prostituição…
A questão da terra e dos grandes projetos é também reivindicação feminina por uma mudança de modelo. Que se pense um novo modelo a partir da reprodução da vida, que venha proporcionar qualidade de vida às pessoas. Buscamos combater um modelo de sociedade que explora, que deteriora o ambiente. Estamos na luta geral contra este modelo econômico, um modelo de desenvolvimento que pensa grandes obras sem priorizar estruturas voltadas à vida das pessoas.
A Marcha Mundial das Mulheres tem também um campo vasto de atuação. Atua na questão do trabalho, na autonomia econômica, na luta contra a violência, pela paz e pela desmilitarização. Se você pegar a região da Europa, a Marcha está muito focada contra as políticas de austeridade, contra o desemprego que afeta diretamente as mulheres. Na África, a Marcha está voltada para a questão da solidariedade com as mulheres e contra a violência.
Fomos parte organizadora do Fórum Social Palestina Livre, para trabalhar a solidariedade com as mulheres da Palestina. Nesta região do mundo, o imperialismo se impõe através de Israel para destruir as pessoas e ocupar o território. A gente vê cada vez mais o uso de armas, o aumento dos orçamentos para segurança, para guerra, em detrimento a outras políticas, e isso também tem sido uma bandeira de luta internacional.
A nossa visão do feminismo é que temos que fazer uma luta contra todo o sistema, porque todos os aspectos do modelo se articulam para a opressão das mulheres.