Por Sonia Coelho, publicado originalmente no Brasil de Fato*
Os processos de aliança entre movimentos sociais, partidos e demais organizações da sociedade civil são fundamentais se queremos fazer transformações na sociedade. Se queremos gerar mudanças mais profundas, estruturais e que necessitam de uma grande mobilização da população fazendo pressão “nas ruas, redes e roçados”, como dizemos na Marcha Mundial das Mulheres (MMM).
Neste sistema capitalista, racista e patriarcal, se não for com muita mobilização social, é muito difícil conseguir vitórias que impliquem em mudanças estruturais para a classe trabalhadora.
Um exemplo inspirador em nossa região é a força do movimento feminista na Argentina no último período. Depois de uma árdua luta de muitos e muitos anos, buscando a construção de unidade e de aliança entre o feminismo e outros processos nos movimentos mistos, as mulheres argentinas conseguiram aprovar a legalização do aborto em 2020.
O caso é simbólico e nos ensina muito, porque é um dos temas mais caros para o movimento de mulheres e feminista e, ao mesmo tempo, o que enfrenta maior dificuldade de avanço, uma vez que combater a legalização do aborto é uma questão central para o programa reacionário da extrema direita.
A construção de alianças entre os movimentos populares, setores populares e o feminismo não só é importante para avançar na construção de um projeto que supere o capital, mas é fundamental também para construir e fortalecer as resistências.
Enfrentar a extrema direita
Nós vivemos um momento em que a extrema direita está muito bem articulada no Brasil e no mundo, demonstrando saber utilizar com destreza os meios de comunicação e as redes sociais e se colocar no debate público com uma roupagem supostamente antissistema.
Isso deixa tudo mais complexo quando pensamos nos desafios que temos enquanto esquerda para mobilizar a classe trabalhadora. Observamos a extrema direita organizar uma militância violenta que, até alguns anos atrás, não víamos ocupando o debate público de forma tão legitimada, cooptando grande parte da classe trabalhadora para seu projeto de poder. Testemunhamos isso com a aderência ao bolsonarismo.
Mas, não existe processo de luta para superar a extrema direita sem a disputa ideológica — coisa que eles sabem bem como fazer. Não à toa, vemos como eles têm cooptado as juventudes, seja aqui ou na Argentina, para eleger seus candidatos, pautar falácias como a ideologia de gênero, destilar ódio, racismo e misoginia sob discursos conservadores e fundamentalistas religiosos.
Tudo isso faz parte do longo processo de implantação do neoliberalismo no mundo. Elementos como o individualismo, consumismo, cortes de direitos, privatizações e outros valores alicerçados numa cultura de disputa por recursos se opõem e buscam destruir as lógicas comunitárias, em que os bens comuns, a natureza, as pessoas podem estar em sintonia de forma interdependente e ecodependente.
Desafios da esquerda
Um dos limites que precisamos debater e ultrapassar enquanto esquerda é nos apegarmos à via eleitoral institucional de luta, como se fosse excludente em relação à organização popular cotidiana. Pelo contrário: nós construímos a vitória da eleição do Lula em 2022. Essa vitória se conecta diretamente com os nossos processos de mobilização, a partir dos movimentos sociais, desde o golpe contra a presidenta Dilma Rousseff, em 2016.
Nos movimentos sociais, conseguimos fazer um processo de aliança e unidade com grande parte da esquerda e setores da sociedade civil, com capacidade de manter a resistência e o debate na sociedade durante a prisão do Lula, assim como denunciar o negacionismo de Bolsonaro e derrotá-lo nas urnas.
Assim têm sido os trabalhos da Frente Brasil Popular e da Frente Povo Sem Medo, sempre com a presença importante do movimento de mulheres. Vimos e vivemos isso com muita força durante todo o período de trevas de Bolsonaro. Temos capacidade de mobilização, de crítica e de incidir na conjuntura.
Desde o início, sabíamos que o governo Bolsonaro não era passível de convivência democrática e nos juntamos na campanha “Fora Bolsonaro”, em que o feminismo teve protagonismo para articular nacionalmente as mulheres.
Mesmo diante dos desafios de articulação de uma grande plataforma de lutas e demandas do movimento feminista, conseguimos colocar no centro das nossas mobilizações a luta em defesa da democracia, a luta contra bolsonarismo e o neoliberalismo.
Para ter vitórias é preciso ter projeto
Os processos de aliança se fortalecem quando há um programa comum de mudanças estruturais, apontando para um novo modelo de sociedade que supere o capitalismo, o patriarcado e o racismo. É justamente assim que conseguimos articular diversos setores da classe trabalhadora e a população como um todo. É preciso ter projeto para fazer a luta ideológica e suas disputas.
Isso impacta diretamente na forma como nós da esquerda temos encarado nossos desafios para a organização popular. Vemos muitos setores voltados apenas para um processos institucionais, enquanto os movimentos precisam estar muito mobilizados para justamente fortalecer a capacidade de governabilidade, fazer frente à extrema direita e abrir caminhos para nossa agenda de reivindicações.
Temos esse desafio de fortalecer a organização de grupos, comitês, coletivos e associações, de fazer uma discussão constante com a classe trabalhadora e de fortalecê-la em suas demandas. A Marcha Mundial das Mulheres é um movimento que nasceu de um processo muito intenso de luta e unidade para pensar eixos centrais e concretos para transformar as relações de opressão da sociedade. Lutar contra a pobreza e a violência sexista sempre esteve presente na construção de alianças na MMM, em experiências com os Fóruns Sociais Mundiais, Fóruns pela Soberania Alimentar, a luta em defesa da Palestina, luta contra a ALCA.
Seria impossível consolidar um movimento internacional nesse campo sem criar alianças entre movimentos e organizações da esquerda contra o neoliberalismo, anticapitalistas, antirracistas e anticoloniais. Isso teve, inclusive, um papel formativo no interior dos movimentos mistos. O feminismo popular aportou para fortalecer a visão política desses outros movimentos e impulsionar processos de autorganização das mulheres dentro desses espaços.
Seguimos na tarefa permanente de pautar o fim de todas as violências, lutar pela legalização do aborto, em defesa de corpos e sexualidades livres, uma vida livre de violência para todas as mulheres, pessoas LGBTI+, povos indígenas, a população negra e periférica e comunidades tradicionais. Tudo isso deve ser parte do nosso projeto político enquanto esquerda no Brasil e na América Latina. É com feminismo e com as mulheres auto organizadas, fazendo luta de classe antirracista em seus territórios diversos, que podemos construir outro mundo, formado por outras relações e ancorado em um projeto emancipatório.
* Sonia Coelho é assistente social e integrante da equipe da Sempreviva Organização Feminista (SOF).
** Este é um artigo de opinião e não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato.