O Censo Agropecuário reúne informações sobre as características dos estabelecimentos agropecuários, das pessoas que os administram e neles trabalham na lavoura, pecuária e extração vegetal.
Muitas feministas, inclusive nós da SOF, atuam para que as orientações da FAO (Organização para a agricultura e alimentação) no Censo Agropecuário Mundial e aqui no Brasil, no Censo realizado pelo IBGE consigam captar a contribuição das mulheres nestas atividades e as desigualdades de gênero e raça existentes neste setor.
Neste momento em que o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas) prepara o Censo Agropecuário 2027 resgatamos o percurso destas discussões, textos e entrevistas como contribuição e aposta na qualificação do levantamento e tabulação das informações, bem como nos debates, propostas e políticas deles decorrentes.
No Censo Agropecuário realizado em 2006 (CA2006) no Brasil pela primeira vez foi perguntado o sexo do responsável pelo estabelecimento e assim foi possível identificar pouco mais de 656 mil (12,7%) estabelecimentos em que as mulheres eram responsáveis, a imensa maioria (pouco mais de 600 mil), estabelecimentos da agricultura familiar.
Desta forma foi possível visibilizar desigualdades e como estas se produzem. Por exemplo, a área média dos estabelecimentos em que as mulheres eram proprietárias era 61% inferior ao dos homens. A principal forma de acesso das mulheres era por herança enquanto dos homens, pela compra de particular.
Ainda que existam muitos relatos de mulheres excluídas na partilha da terra dado o pressuposto de que ela terá acesso pelo casamento, o mercado parece mais excludente do que a família patriarcal. Entre os estabelecimentos da agricultura familiar 11% daqueles em que mulheres eram responsáveis tinham recebido orientação técnica, enquanto que esta proporção subia para 22% no caso dos homens.
Para chegar a esta mesma proporção 66 mil estabelecimentos em que mulheres são responsáveis deveriam receber orientação técnica. Este número foi um argumento utilizado na defesa da ação afirmativa com ATER (Assistência técnica e extensão rural) para mulheres e com 50% de público de mulheres na ATER agroecologia.
Esta e outras análises sobre o Censo estão desenvolvidas no artigo “Censo Agropecuário 2006 Brasil: uma análise de gênero” publicado no livro “As mulheres nas estatísticas agropecuárias. Experiências de países do sul” que conta com análises sobre Equador, Gana, Chile, Índia.
A Diretoria de políticas para mulheres rurais do Ministério do Desenvolvimento Agrário que havia encomendado o estudo sobre o CA2006 envolveu-se na preparação do Censo de 2016, que terminou sendo realizado em 2017.
A proposta era entender melhor a dinâmica familiar, os processos de tomada de decisão e incluir a questão de raça. Este percurso está em diálogo com estudos feministas sobre o Censo Agropecuário em âmbito mundial que apontam para a necessidade de levantar informações por sub-exploração, sobre a posse de ativos e a tomada de decisão.
No Brasil as Cadernetas Agroecológicas mostraram a produção sob a responsabilidade das mulheres em geral ao redor da casa e consideradas “miudezas”. Um levantamento por sub-exploração traria para as estatísticas oficiais a produção ainda invisível das mulheres. Considerada uma operação muito custosa pelo IBGE foi remetida para uma possível pesquisa amostral.
Outra vertente, a posse de ativos (terra, infraestrutura, equipamentos de produção, capital imobilizado em joias) é destacada por economistas feministas como Bina Agarwal e Carmen Diana Deere que reconhecem uma correlação positiva entre posse de ativos pelas mulheres e capacidade de evitar ou sair de relações abusivas e violentas. Outro tema é a tomada de decisão sobre o que, onde, quando plantar, que manejos realizar, como utilizar os rendimentos provenientes do trabalho. Conhecer mais estas dinâmicas permite criar estratégias para fortalecer as mulheres quando estas querem produzir de forma agroecológica em sítios familiares em que seus maridos e pais produzem no modelo da agricultura industrial.
Na construção do formulário do Censo foi possível integrar na prova piloto o Quadro 10 em que eram caracterizadas até cinco pessoas com vínculo de parentesco com o responsável pelo estabelecimento quanto ao sexo, raça, idade, escolaridade, atividade fora ou dentro do estabelecimento, na agropecuária ou não.
No caso das mulheres era perguntado que afazeres domésticos realizavam, como preparo de alimentos, coleta de sementes, coleta de lenha; buscar água, em uma primeira aproximação entre produção e reprodução.
O golpe que destituiu Dilma Roussef e a consequente extinção do MDA suspendeu este processo. Já não foi possível acompanhar a prova piloto e avaliar em conjunto com o IBGE seus resultados. O corte de orçamento adiou o Censo por um ano e pode ter induzido a redução do questionário, como por exemplo, o Quadro 10.
Ainda assim aprimoramentos relativos à questão de gênero e raça foram mantidos. No SIDRA Sistema IBGE de Recuperação Automática das 137 tabelas que organizam informações em diferentes escalas territoriais 35 podem ser desagregadas segundo o sexo do produtor(a) e 6 incluem a variável, cor/raça do produtor ou cônjuge.
No entanto, não foram disponibilizadas tabelas que permitam cruzamentos de sexo e raça. Com base nestas tabulações foi elaborado o artigo “As mulheres no Censo Agropecuário 2017”.
O CA 2017 comparado ao CA 2006 revelou uma maior presença de mulheres produtoras: 946 mil em 5,07 milhões de estabelecimentos (18,7%) em 2017 frente a 656 mil em 4,52 milhões (12,7). Enquanto o número de estabelecimentos aumentou em pouco mais de 10% o número de produtoras responsáveis por eles aumentou em pouco mais de 30%.
A codireção do estabelecimento pelo casal foi incluída como resposta possível no Censo. Segundo o Manual do recenseador esta resposta se aplica “no caso de o casal dividir as responsabilidades sobre a direção do estabelecimento, ou seja, quando ao menos parte das atividades realizadas no estabelecimento tem decisões tomadas por ambos sobre o que fazer, quando fazer e como fazer.”
No total dos estabelecimentos 20% se declararam em codireção pelo casal. Muitas vezes encontramos com pessoas que argumentam o debate de gênero não ser necessário porque na agricultura familiar tudo seria compartilhado. No entanto, em 77% dos estabelecimentos os produtores se autodeclararam da agricultura familiar, proporção bem distante do reconhecimento das decisões compartilhadas. A codireção pelo casal é uma primeira aproximação das informações organizadas para além dos indivíduos produtores reconhecendo as interdependências nas dinâmicas familiares socioeconômicas.
Quase 53% dos estabelecimentos têm como responsável uma pessoa negra. Um indicador das desigualdades de raça pode ser a área média destes estabelecimentos é quase 46% menor do que a área média do total. O CA 2017 avançou na qualificação de territórios quilombolas e indígenas e assim foi possível verificar que licenças e titulações para estas comunidades foram a principal forma de acesso das mulheres à terra (30,38% e 23,28% respectivamente, seguida pelas titulações de reforma agrária (22,2%). Ou seja, a melhoria na forma de obtenção da informação desvelou a importância da regularização e desconcentração fundiária no enfrentamento de desigualdades de gênero e raça.
Neste momento encontra-se em preparação o Censo Agropecuário 2027. Um coletivo de militantes da questão agrária e usuários do Censo formulou o documento “Sugestões para discutir objetivos do questionário do próximo Censo Agropecuário”, aqui disponível.
A proposta é de que o Censo integre aspectos ecológicos, econômicos e sociais para dar conta de desafios como a fome e a insegurança alimentar, o acesso à terra e às condições de produção. Estão incluídas propostas para aproximar o Censo da diversidade de produtos e atividades, inclusive aquelas realizadas no âmbito doméstico, que caracteriza a agricultura familiar e tradicional, em especial por mulheres que praticam a agroecologia.
O seminário “Estatísticas rurais com abordagem de gênero: Censo Agropecuário” resgata estes debates e propostas na relação com o fortalecimento das agricultoras familiares e das comunidades tradicionais e das políticas que vão nesta direção.