A divisão sexual do trabalho está na base social da opressão e da desigualdade. Em primeiro lugar, é preciso destacar que ela é histórica, ou seja, foi sendo constituída, não é imutável. Mas tem princípios que permanecem; o que modificam são as modalidades. Isso nos ajuda a pensar sobre a permanência dessa desigualdade. Danièle Kergoat, que foi muito importante para sistematizar esse conceito, considera que há dois princípios organizadores da divisão sexual do trabalho. Um deles é a separação, essa idéia que separa o que é trabalho de homens e de mulheres. Outro é a hierarquia, que considera que o trabalho dos homens vale mais do que o das mulheres.
Uma das principais justificativas ideológicas para a divisão sexual do trabalho é a naturalização da desigualdade, que empurra para o biológico as construções sociais e as práticas de homens e mulheres. Ou seja, atribui a uma essência biológica, como parte da natureza, a construção do masculino e do feminino. Mas é preciso articular a ideologia, a reprodução simbólica, com a existência de uma base material.
Neste sentido, é importante chamar atenção para o fato de que, muitas vezes, o conceito de divisão sexual do trabalho fica reduzido às estatísticas sobre as diferenças de inserção no mercado de trabalho de homens e mulheres. Isso não dá conta da complexidade deste conceito, que faz parte de um processo da luta e da organização feminista, e que busca justamente entender como se transforma em desigualdade o trabalho entre homens e mulheres.
A emergência do conceito da divisão sexual do trabalho teve um papel muito importante para questionar o que era a definição clássica de trabalho. As feministas que discutiram a divisão sexual do trabalho estavam no campo do marxismo. Elas problematizaram que o debate de classe não explicava e não dava conta do conjunto da realidade do trabalho. Num primeiro momento, parecia haver uma destinação dos homens ao trabalho chamado
produtivo e uma destinação prioritária das mulheres ao trabalho reprodutivo. Mas o que se viu foi muito mais do que isso. Nós, mulheres, estávamos e estamos simultaneamente nas duas esferas: no trabalho produtivo e no trabalho reprodutivo.
Dessa forma, o trabalho que realizamos em casa não é considerado. Para Cristina Carrasco, o não reconhecimento do trabalho doméstico e de cuidados tem por objetivo ocultar sua dimensão econômica e a relação com a exploração capitalista. No capitalismo, houve uma redução do conceito de trabalho àquelas atividades vinculadas ao mercado. Antes do capitalismo, era considerado trabalho o conjunto das atividades humanas necessárias para nossa existência. Essa redução do conceito de trabalho veio vinculada a uma forte separação, que o capitalismo instaurou entre o que é uma esfera produtiva e uma esfera reprodutiva, correspondente a uma outra divisão entre esfera pública e privada. No capitalismo, é considerado produtivo só aquilo que gera troca no mercado, ou seja, aquilo que pode se “mercantilizar”. E aí o trabalho reprodutivo deixa de ser trabalho porque não se
troca no mercado.
Ao mesmo tempo, o trabalho mercantil depende do trabalho doméstico e de cuidados, que é feito na casa, realizado pelas mulheres. A abordagem da economia feminista consolidou um enfoque de economia mais amplo, que considera o trabalho de reprodução e outras atividades não monetárias como parte da economia. Resgatou o conceito do econômico, que não é só o que se produz para vender no mercado, e afirmou que o trabalho doméstico tem um papel econômico. Portanto, todas nós, mulheres, independentemente se estamos ou não no mercado de trabalho assalariado, damos contribuições para a construção da economia, e isso está ancorado em uma análise da centralidade do trabalho humano na construção do conjunto de bens produzidos pela humanidade.
Isso foi muito importante na nossa resistência ao neoliberalismo nos anos 90, porque nos permitiu retomar a agenda econômica para as mulheres. É uma idéia que supera a percepção da economia vinculada aos homens, às empresas, ao sistema financeiro, dos bancos. Nessa visão, as mulheres são vistas como parte social e, neste sentido, a sociedade como um todo tem uma dívida para com as mulheres, uma dívida também econômica.
Outro elemento importante é perceber como hoje ainda vivemos uma situação de bipolaridade do trabalho feminino. Sob a globalização neoliberal, uma pequena camada de mulheres conseguiu ter acesso a altos postos de trabalho. De outro lado, a grande maioria está nos trabalhos mais precários.
Dentro de uma sociedade baseada no individualismo, se milhões não venceram é porque são incapazes. Essa bipolaridade pode despertar diferentes interesses entre as mulheres. A idéia de que, pela primeira vez, na sociedade atual, as mulheres tiveram acesso ao capital por elas mesmas não só pelas suas relações de família, de herança – distancia nossos interesses enquanto mulheres. Há mulheres que, individualmente, pela sua posição, pelo seu acesso ao capital, têm interesses diferente de nós.
Divisão internacional e sexual do trabalho
Um desafio colocado para as mulheres é pensar a nova reconfiguração da divisão internacional e sexual do trabalho e em como uma nova forma da divisão sexual do trabalho estrutura a divisão internacional do trabalho. Por exemplo, em todos os setores “transnacionalizados” que precisam de mão-de-obra intensiva, quem está ali são as mulheres.
O capitalismo se utiliza da mesma forma do trabalho intensivo das mulheres, como foi no final do século XIX, início do século XX, mas agora sobre outras modalidades, como a migração. Em vários países, inclusive na América Latina, exportadores de mão-de-obra há muitos anos, incrementaram a migração das mulheres e aquilo que as teóricas chamam de globalização do trabalho de cuidados. Em geral, as mulheres que migram do sul para o norte o fazem para cuidar dos filhos e dos idosos no norte, quando no norte também houve uma retração do Estado.
É interessante notar que, na discussão sobre a crise econômica global, a crise dos cuidados não apareceu. Aqui no Brasil a migração para os países do norte não é muito visível, embora exista em grande número. Mas em casos como o das Filipinas, migraram inclusive mulheres de carreira universitária. O mesmo ocorre com países do Caribe, onde as enfermeiras migram para os Estados Unidos, que por isso não precisam investir na formação da mão-de-
obra de enfermagem.
Bien vivir
Há uma avaliação bastante ampla que na América Latina há uma nova situação a partir da derrota do projeto da ALCA e da eleição dos chamados governos progressistas, de esquerda, populares. Esses governos têm em comum uma ruptura em relação a políticas estado- unidenses e buscam a construção de políticas autônomas. Para isso, há uma reafirmação da soberania nacional, ao mesmo tempo em que é feito um discurso da importância da integração latino-americana. É nesse marco que há uma retomada da discussão sobre o socialismo do século XXI e também das propostas de um novo modelo em torno do “bien vivir”, ou “vivir bien”, de Equador e Bolívia. Ao mesmo tempo, vemos redefinições em relação ao Mercosul, a consolidação da Unasur e também a construção da ALBA. No discurso de todas essas propostas há a incorporação geral dos princípios que devem organizar a sociedade discutidos entre as feministas. Por exemplo, a idéia da reciprocidade, da solidariedade, da redistribuição e da complementaridade.
Embora não apareçam como contribuição das feministas, há uma explícita convergência do sentido da nova sociedade que se quer construir. Ao mesmo tempo, precisamos continuar nosso trabalho de dar visibilidade às contribuições e elaborações das mulheres deste nosso movimento.
Um olhar sobre o conjunto
É importante levantar que as relações de gênero ou a divisão sexual do trabalho não dão conta de pensar a totalidade da nossa situação. Danièle Kergoat fala que não há como hierarquizar gênero e classe e que há uma coextensividade. Temos o desafio de pensar o conjunto das relações e, a partir daí, buscar transformá-las integralmente.
Nesse aspecto, é importante uma menção ao questionamento às políticas de igualdade em geral, presente em diversos espaços. Este questionamento nasce, em geral, de uma crítica à igualdade, que continua tendo como referência de universal o masculino, ou do desejo de
não queremos ser iguais aos homens, a partir de nossa crítica ao machismo.
Mas é importante diferenciar o conceito de equidade e igualdade. E, de fato, se não pensamos na transformação global da sociedade, no conjunto das relações, muitas vezes o que chamamos de igualdade fica no terreno da equidade ou da equiparação. Por exemplo, em termos de renda, escolaridade, propriedade entre homens e mulheres, quando falamos de igualdade estamos tratando de uma transformação geral de como a sociedade se
organiza e de um questionamento a todas as formas de desigualdade e hierarquia. Isso traz, por exemplo, um outro olhar para a relação reprodução, para o conceito de trabalho, para a dimensão étnico-racial.
Várias feministas apontam que o debate iluminista, referência para o debate dos direitos universais, tem uma dívida com as mulheres e também com outros setores oprimidos. Falam da necessidade de radicalizar o conceito de universal para que não esteja restrito às experiências e referências masculinas. Sabemos o quanto ainda é difícil, por exemplo, reconhecer que a luta por creche faz parte de uma luta do mundo do trabalho, e não apenas
das mulheres. É como se a luta por creche não atingisse todo mundo. Sabemos que quem precisa mesmo da creche para trabalhar são as mulheres; os homens podem entrar no mercado de trabalho como se não tivessem filhos. Portanto, continua fundamental questionar essa destinação exclusiva das mulheres ao cuidado das crianças.
Por isso a economia feminista fala da necessidade de ter uma outra forma de enfocar os problemas e “reconceituá-los” a partir da recuperação da experiência das mulheres. Ou seja, levar em consideração as práticas sociais concretas, reconhecendo a participação, os acúmulos e as contribuições das mulheres para a história.
Isso não significa que não devemos continuar lutando por políticas universais, como a redução da jornada de trabalho, uma das bandeiras da CUT. Hoje as jornadas são muito mais extensas do que prevê a lei por uma primazia do mercado, não por uma necessidade, uma vez que o grau de produtividade da sociedade permitiria para o conjunto da população jornadas de trabalho muito menores, o que inclusive poderia contribuir para uma
reorganização da reprodução, tirando a sobrecarga que existe hoje sobre as mulheres.
O mesmo vale para as políticas de salário mínimo. Nós, na Marcha Mundial das Mulheres, aprendemos muito com as companheiras da CSN e da Marcha Mundial das Mulheres do Quebec. Em 1995, quando elas fizeram a Marcha Pão e Rosas, uma das principais reivindicações foi o aumento de salário mínimo, o que nos chamou a atenção. Nos países que têm um salário mínimo alto, que funciona não como um piso, mas quase como um teto,
o grau de desigualdade é menor.
Temos que conseguir mudar o paradigma que, ainda hoje, é centrado nos ganhos do mercado para um paradigma vinculado ao bem estar de todos e todas, o que exige colocar o cuidado da vida humana no centro.
A lógica do mercado prevê que as pessoas devem estar o tempo todo disponíveis para o seu trabalho mercantil, enquanto a lógica do cuidado exige acompanhar os ciclos da vida. Ou seja, em diferentes períodos da vida necessitamos de mais cuidados do que em outros, como na infância e na velhice.
Hoje essa sociedade do mercado, no mundo inteiro, se sustenta na utilização do tempo e do trabalho como fontes inesgotáveis e como variáveis de ajuste para manter este modelo funcionando. Em São Paulo, uma empregada doméstica sai de casa às 6h e volta pra casa às 20h. O que a gente sempre estica é o tempo e o trabalho das mulheres. É visível: em períodos de desemprego na família, as mulheres trabalham mais, fazem um bico, produzem mais bens e serviços dentro de casa.
Todos esses elementos têm que vir para nossa agenda, até pra gente olhar para uma campanha especifica. Na campanha Igualdade de Oportunidades, por exemplo, o trabalho de cuidados tem que estar posto no debate.
É necessário continuar com essas lutas chamadas tradicionais, mas sempre com o objetivo de incidir sobre o maior número possível de mulheres. Ao mesmo tempo, temos que continuar insistindo e colocando no debate essa compreensão do trabalho num sentido mais amplo, não só como assalariado, mas também a reprodução social, pensando a economia de uma forma ampliada. A economia não está desvinculada do social e do cultural. Temos que repensar nossa sociedade e reconstruir nossos paradigmas, mexendo em alguns elementos em geral naturalizados.
Nalu Faria é psicóloga, integrante da SOF (Sempreviva Organização Feminista) e da Marcha Mundial das Mulheres.
Ótima matéria!