Originalmente publicado no Brasil de Fato
Nessa semana, viveremos no Brasil o Dia Internacional dos Povos Indígenas e a realização do Aquilombar, ato político em defesa do acesso pleno ao território e contra os desmontes das políticas públicas para as comunidades quilombolas. O ato ocorrerá em Brasília, organizado pela Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq). Essas mobilizações pautam outra política para os povos e para a natureza, questões especialmente importantes nos tempos em que vivemos de disputas de projetos de país e de sociedade.
Os movimentos de povos e comunidades tradicionais estão cada vez mais mobilizados no Brasil. Além do Aquilombar, os acampamentos Terra Livre e as Marchas das Mulheres Indígenas tem sido marcantes para a resistência política. O fortalecimento desses sujeitos políticos se dá em um contexto de aumento da violência, que afeta os povos indígenas e quilombolas e seus aliados. Os cruéis assassinatos de Dom Phillips e Bruno Pereira simbolizam a escalada violenta contra os lutadores e lutadoras em defesa dos povos. Investigações recentes na Amazônia revelaram a grande infraestrutura que o garimpo ilegal criou na região, com inúmeras pistas de pouso ilegal que transportam minério para fora do país, abastecendo inclusive empresas das Big Techs como Apple, Google, Microsoft e Amazon.
Essas investigações evidenciam o que os movimentos sociais, dentre eles o movimento feminista, denunciam há muito tempo: que o poder corporativo das empresas transnacionais, aliado a governos neoliberais, é o grande responsável pelo aumento da destruição da natureza e a precarização da vida.
Contra o poder corporativo e as falsas soluções
Vivemos em uma época de crise ambiental generalizada, causada principalmente pelo desenvolvimento do capitalismo como sistema global nas últimas décadas. Diante dessa crise, o poder corporativo tenta se colocar como sujeito capaz de mitigar os problemas ambientais através da sua versão “verde”, oferecendo soluções de mercado.
O maior exemplo disso é o mercado internacional de carbono, que está se estruturando através das Nações Unidas após a COP26. Através desse mercado, é possível que tanto o setor público quanto o privado comercializem suas reduções de emissões, comprando “licenças para poluir”. Nesse sistema de compensações, as empresas e os Estados não precisam repensar seus modelos de produção e consumo, porque se abre a possibilidade de seguir fazendo tudo como sempre se fez.
Outro campo onde o poder corporativo tem investido em “soluções sustentáveis” é a “transição energética”. A retórica das empresas transnacionais é a de que estão criando soluções no campo das energias renováveis e da eletrificação para, no médio prazo, cessar a exploração de combustíveis fósseis. Sabemos que reduzir até zerar a exploração de fósseis é realmente uma medida necessária para mitigar os efeitos do colapso ambiental, mas a realidade nos mostra que as empresas não estão de fato comprometidas com essa transição.
Com os obstáculos para a União Europeia obter petróleo com a guerra na Ucrânia, em vez de investirem em energias renováveis, as empresas expandiram a exploração de petróleo e gás no norte da África. Ou seja, a decisão sobre em quais fontes energéticas investir é, para as empresas, baseado sempre antes em um cálculo econômico do que em preocupações ambientais.
Mesmo a geração da energia renovável, quando feita com base na racionalidade do poder corporativo, gera impactos socioambientais e reforça as desigualdades já existentes nas comunidades. Movimentos e organizações dos estados do Nordeste brasileiro têm denunciado, por exemplo, o impacto que os parques eólicos têm sobre o território, a vida e o trabalho nas comunidades, afetando em especial as mulheres.
O que as empresas e governos neoliberais têm oferecido para lidar com a crise ambiental é mais mercantilização, mais concentração de poder e desigualdade e mais falsas soluções, que não resolvem de fato as questões ambientais. Através das lutas nos territórios, aprendemos que as saídas passam necessariamente pela soberania e pela defesa dos bens e modos de vida comunitários.
Soberania para não mercantilizar a natureza
As lutas indígenas, quilombolas e dos demais povos e comunidades tradicionais dão centralidade para a soberania e o direito pleno sobre seu território. Seja na luta contra megaprojetos, pela titulação das terras ou pela defesa dos bens comuns, a soberania e o direito à autodeterminação são centrais.
A partir do feminismo e em aliança com outros movimentos, temos pautado que nosso projeto político passa pelo reconhecimento dos direitos dos povos e pela afirmação das soberanias alimentar, tecnológica e energética. Entendemos que essas questões devem dizer respeito às esferas do público e do comunitário, e não ao poder corporativo. Isso quer dizer que as decisões sobre os sistemas alimentares e energéticos e sobre o desenvolvimento e uso de tecnologias devem se basear nas necessidades das pessoas e em decisões soberanas e democráticas. Nesse processo, os modos, escalas e tempos de produção devem ser outros, que não os do capital.
Assim, vamos construindo o caminho rumo a uma sociedade que se relacione com a natureza e com a reprodução da vida de outra forma. Acreditamos que, enquanto não trilharmos esse caminho, estaremos sempre tratando alguns territórios como zonas de sacrifício. Por consequência, estaríamos dizendo que as vidas construídas nesses territórios são descartáveis. E não são.
Os crimes da Vale em Minas Gerais talvez sejam o exemplo mais claro do que significa colocar o lucro acima da vida. Eles representam uma materialização radical do que temos afirmado a partir da economia feminista: de que vivemos uma época de conflito entre o capital e a vida, mas podemos romper com isso e organizar a sociedade e a economia de outra forma, colocando a vida no centro.
*A Coluna Sempreviva é publicada quinzenalmente às terças-feiras. Escrita pela equipe da SOF Sempreviva Organização Feminista, ela aborda temas do feminismo, da economia e da política no Brasil, na América Latina e no mundo. Leia outras colunas.
**Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Vivian Virissimo