O movimento feminista trouxe para a esfera pública o debate sobre a sexualidade, defendeu o direito das mulheres de expressar seu desejo sexual, o exercício da sua sexualidade com autonomia e, para isso, a centralidade de separar sexualidade de reprodução. Para que de fato haja uma separação entre sexualidade e maternidade como um destino imposto, o direito de interromper uma gravidez indesejada é fundamental e, portanto, a descriminalização e legalização do aborto. A defesa desse direito sempre foi tratada pelo movimento feminista como fundamental, assim como a garantia do acesso a métodos anticoncepcionais, para o exercício da sexualidade com autonomia.
A criminalização do aborto não impede que ele aconteça. As mulheres sempre recorrem à sua prática diante de uma gravidez indesejada, mesmo que isso coloque em risco sua vida e sua saúde. Isso ocorre justamente porque nessa situação está em jogo sua possibilidade de decidir sobre o exercício da maternidade em um determinado momento. A partir desse controle sobre o corpo e a vida das mulheres, são os outros que definem se elas podem ou não decidir, ou seja, quando são tratadas como irresponsáveis e incapazes de tomar decisões sensatas. Isso ocorre ao mesmo tempo em que não há reconhecimento do direito das mulheres exercerem a maternidade, pois em geral a maioria não tem asseguradas as condições para ter filhos, como o direito à saúde ou à creche.
A criminalização do aborto condena milhões de mulheres a viver com culpa, vergonha e medo. Culpa por ser consideradas pecadoras. Vergonha por recusar a maternidade e não ter esse direito. Medo da polícia, da família, da igreja, dos médicos. Hoje são milhões de mulheres consideradas criminosas e tantas outras cúmplices. Essa realidade tem um corte de classe, geração e étnico racial, pois são as mulheres pobres, em sua maioria negras e jovens, que abortam em situação insegura.
O aborto no Brasil
A cada ano, são realizados cerca de um milhão de abortos no Brasil. O procedimento, que é considerado crime, está previsto no código penal e prevê pena de um a três anos de detenção, sendo permitido somente em caso de gravidez resultante de estupro ou de risco de vida para a mãe. As brasileiras se utilizam de vários métodos para iniciar o abortamento, tais como chás, introdução de sondas e, nas últimas duas décadas, dados apontam que a utilização do medicamento misoprostol, vendido em mercados paralelos1, contribuiu para a diminuição da morbidade e mortalidade a partir da generalização do seu uso. Há também clínicas clandestinas, nas quais a segurança e qualidade do atendimento dependem do preço. Em São Paulo, o procedimento custa em torno de R$ 2.500,00, sendo, portanto, uma opção disponível para poucas.
A realização do aborto em condições inseguras e suas sequelas são a terceira causa de mortalidade materna no Brasil. As mulheres que morrem, em sua grande maioria, são pobres, jovens, negras e moradoras do meio rural. As pesquisas revelam que quase 50% das mulheres que interromperam uma gravidez são casadas ou vivem com companheiros, e têm filhos. No Brasil, uma em cada sete mulheres entre 18 e 39 já abortou. A falta de acesso permanente e estável à anticoncepção é um dos fatores principais. Porém é determinante o padrão de sexualidade e a recusa dos homens em usar a camisinha.
O resultado mais perverso desta situação é a criminalização das mulheres pela prática do aborto clandestino e suas consequências tanto com relação à saúde, como com relação à interferência nas decisões das mulheres sobre seus projetos de vida. A prática clandestina do aborto coloca a vida e saúde de muitas mulheres em risco. Fazer um aborto não é um ato simples e corriqueiro, mas uma decisão difícil, especialmente para as mulheres pobres, para as quais tal decisão enfrenta uma série de obstáculos, desde ter que buscar uma clínica clandestina e ter dinheiro para pagá-la, conseguir obter medicamento (Citotec)1 no chamado mercado clandestino, além de serem discriminadas no serviço de saúde.
A Universidade de Brasília (UnB) em conjunto com o Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero, fez uma pesquisa intitulada “Quando o aborto se aproxima do tráfico”, que demonstra que, para realizar o aborto com Citotec, uma das formas mais comuns hoje em dia, a mulher ou seu companheiro precisa adquirir este medicamento junto a traficantes que cobram preços exorbitantes, além do risco que esta relação significa.
Mas o problema não termina aí. Muitas mulheres com aborto incompleto têm medo de buscar atendimento em um hospital e ser maltratada ou denunciada. Este medo não é infundado. A pesquisa revelou a participação de médicos como testemunhas em dez inquéritos policiais investigados neste estudo em Brasília. Ou seja, os profissionais de saúde quebram o sigilo médico em nome de suas concepções morais ou religiosas, e as mulheres, que deveriam ser acolhidas e receber atendimento imediato para não correr risco de vida, são julgadas e tratadas como criminosas no momento de sua entrada no hospital.
Em nenhuma parte do mundo a legislação proibitiva do aborto foi capaz de impedir que as mulheres interrompam uma gravidez indesejada. No Brasil, essa situação não é diferente. O Ministério da Saúde fez um estudo sobre as pesquisas sobre o aborto nos últimos 20 anos e comprovou a tese de que a ilegalidade do aborto traz consequências para a saúde das mulheres e tem impacto negativo na vida das mulheres pobres e negras.
De acordo com essa pesquisa (2008), todos os anos, cerca de 240 mil brasileiras são internadas nos hospitais do SUS em decorrência de abortos inseguros. Elas chegam com hemorragia e infecções, que por vezes as levam à morte. São cerca de um milhão de abortos por ano. A pesquisa da UNB apurou que 15% das mulheres no Brasil urbano afirmam ter realizado aborto. São mulheres, em geral, com parceiros fixos e que usam métodos contraceptivos.
A prática do aborto inseguro contribui para que muitas mulheres morram em decorrência de procedimentos mal feitos, o que faz com que seja a terceira causa da mortalidade materna no Brasil e, em capitais como Salvador, como a primeira causa da mortalidade materna. Esta taxa é 10 vezes maior do que a considerada aceitável pela Organização Mundial de Saúde (IMAIS, 2009). Estas estatísticas por si só seriam suficientes para que a sociedade brasileira, e especialmente as autoridades, se empenhassem para alterar esta situação.
Porém, o que tem acontecido no Brasil, nos últimos anos, é o contrário disso. Há uma ofensiva de setores conservadores para aprofundar a punição de mulheres que fazem aborto. Identificamos nesses setores membros das igrejas católicas e evangélicas, e parlamentares que nos últimos anos tem atuado de forma articulada para ampliar a punição, seja no processo eleitoral, no Congresso Nacional, nas assembleias legislativas e nas câmaras municipais.
As eleições de 2010 foram cruciais nesse sentido. Tais setores impuseram um debate equivocado e chantagista para as candidaturas, pressionando-as para que não se comprometessem com nenhuma alteração na legislação punitiva, nem com a discussão sobre as consequências do aborto ilegal para as mulheres. O tom destes setores era de ataque a quem apóia aborto em todas as situações, seja nos casos previstos em lei, seja em caso de saúde publica. Qualquer candidatura que ousasse publicizar um nível de ponderação com relação
à situação do aborto clandestino era denunciada como conivente com assassinatos. Aliado a esta estratégia, se difundiu o discurso de que as mulheres que decidem pelo aborto são irresponsáveis e assassinas. Portanto, muitas candidaturas ficaram reféns deste discurso.
Assim, ao contrário do se poderia esperar de um momento eleitoral em que tínhamos duas candidatas mulheres disputando a eleição presidencial, os compromissos firmados foram no sentido de manter a situação do aborto circunscrita ao sistema penal, retrocedendo em relação a outros momentos em que os governantes e candidatos reconheciam a situação de clandestinidade do aborto como uma questão de saúde pública e que, portanto, o Estado deveria enfrentar o problema no âmbito do sistema de saúde.
A perseguição das mulheres é intensificada através de projetos de lei como o do Deputado Francisco Silva (PP), que transforma o aborto em crime hediondo, ou do Deputado Severino Cavalcante, que torna ilegal o aborto inclusive nos casos de risco de vida da mãe e nos casos de estupro. Há, ainda, a proposta do Estatuto do Nascituro, um projeto em tramitação no Congresso que estabelece direitos aos não nascidos, ou seja, as células fecundadas terão mais direito que as mulheres. Isto é resultado do conservadorismo e do fundamentalismo religioso presentes no Congresso Nacional que, na legislatura passada, tentou emplacar uma CPI do aborto como forma de avançar na criminalização. Estes exemplos explicitam outro aspecto central do debate. A laicidade do Estado é desrespeitada cada vez que concepções religiosas e morais são impostas a políticas públicas, em desrespeito à cidadania e autonomia das pessoas.
Em 2007, a Organização Mundial da Saúde (OMS), organizou uma pesquisa que demonstrou que nos países onde o aborto é permitido por lei o número de procedimentos é menor. Em países da Europa Ocidental, a incidência é de 12 abortos por mil mulheres. Na América Latina, 31 abortos por mil mulheres. No México, por exemplo, o resultado da legalização do aborto fez diminuir a mortalidade materna e as internações por hemorragias.
Ou seja, a repressão ao aborto não está a serviço da defesa da vida como os setores conservadores alegam, mas somente pode ser explicado como uma forma de impor um lugar de subordinação onde a maternidade é a função primordial da mulher, em uma sociedade que desconsidera sua capacidade de decidir sobre seu corpo e sua vida. As ações desses grupos banalizam a morte das mulheres, as depreciam e violam seus direitos. O resultado extremo desta violação é a morte de mulheres em decorrência do aborto clandestino.
Mulheres em luta e resistência
Desde a segunda metade dos anos 1980, o movimento feminista conseguiu ampliar o debate e a luta pela descriminalização do aborto no país. No início da década seguinte, o debate cresceu nos setores populares, inclusive os posicionamentos pró-descriminalização dentro de várias organizações como a CUT (Central Única dos Trabalhadores) e a CMP (Central de Movimentos Populares). A partir de 1995 há um refluxo nesse processo. De um lado tornou-se hegemônica no movimento de mulheres a posição aprovada na conferência da ONU sobre População, realizada no Cairo, que centrou a atuação em lobbys no Congresso para regulamentar no serviço público os casos previstos em lei, em detrimento da luta pela descriminalização.
Do outro, ocorreu a articulação sistemática de setores “Pró-vida”, que atuam no legislativo, e que têm organizado ações para criminalizar as mulheres. Um exemplo foi o fechamento de uma clínica na cidade de Campo Grande, ocorrido em 2007, que inicialmente indiciou quase dez mil mulheres e depois esse número baixou para dois mil. Várias mulheres foram processadas. Posteriormente esse fato se tornou cada vez mais comum e várias clínicas sofreram intervenção policial em Porto Alegre, Belém, Rio de Janeiro, Fortaleza entre outras. Em geral, todas ocorreram após reportagens da Rede Globo.
Com a eleição de Lula, em 2003, há uma retomada do debate público sobre a descriminalização e legalização. No conjunto do movimento de mulheres, houve uma ampliação da posição que considera importante a mobilização, e não apenas as ações de lobby.
Após a primeira conferência governamental de política para as mulheres, em 2004, foi criada uma comissão tripartite (Executivo Federal, Legislativo e sociedade civil) que elaborou uma proposta de projeto de lei, que não chegou a ser votada. Esse foi um momento importante, já que a iniciativa partiu do executivo federal, legitimada pelo debate amplo da conferência, que contou com 1787 delegadas, representando 120 mil mulheres participantes nas etapas municipais e estaduais. Paralelamente, cresceram as iniciativas do setor Pró-vida, impedindo qualquer avanço legislativo. Com o avanço da ofensiva dos setores conservadores para fechar clínicas e punir as mulheres, o movimento feminista, em parceria com outros movimentos sociais, decidiu criar uma Frente Nacional contra a criminalização das mulheres e pela legalização do aborto, entendendo que a luta tem que envolver amplos setores como juventude e organizações profissionais como forma de enraizar o debate e enfrentar a disputa na sociedade.
No dia 18 de agosto, em Brasília, a Frente Nacional, criada em 2008, organizou uma audiência pública no Senado e uma plenária para traçar estratégias. Nesta plenária foi apresentada a plataforma para debater propostas para a legalização do aborto no Brasil. O intuito da Frente é apresentar para a sociedade um debate sobre a realidade do aborto clandestino e suas consequências, apontando para a necessidade de reverter o processo de denúncias, humilhações e ações judiciais em curso, que atingem tanto mulheres que abortaram quanto as trabalhadoras que as atendem e as organizações que lutam pela legalização. A Frente tem organização nacional e se estrutura nos estados, reunindo pessoas e organizações que defendem a autonomia das mulheres e o direito ao aborto. A plataforma prevê um conjunto de medidas que considera a autodeterminação reprodutiva como central em uma sociedade justa e igualitária.
O grande desafio para se avançar na legalização do aborto é enraizar este debate na sociedade para criar condições no sentido de reverter a legislação punitiva. Ser mãe ou não é uma decisão que cabe a cada mulher. Ao Estado cabe a função de garantir condições básicas para que as mulheres possam tomar a melhor decisão em cada momento de suas vidas.
Bibliografia
DINIZ, Débora. Pesquisa Nacional de aborto, UNB e ANIS – Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero, 2010. Ética, aborto Y despenalización.
FARIA, Nalu. A luta pela descriminalização do aborto no Brasil. http://br.boell.org/ downloads/Texto_Nalu_aborto_versao.pdf (acesso em 14 de outubro de 2011)
GALLI, Beatriz. Diretos reprodutivos e direitos humanos em disputa. In: Direitos humanos no Brasil 2009: relatório da Rede Social de Justiça e Direitos Humanos.
IMAIS. O impacto da ilegalidade do aborto na saúde das mulheres em Salvador e Feira de Santana, 2009.
* Sonia Coelho é integrante da Sempreviva Organização Feminista (SOF) e militante da Marcha Mundial das Mulheres
Texto publicado no Relatório Direitos Humanos no Brasil 2011.