Por Natália Lobo* publicado originalmente no Brasil de Fato

O Brasil está queimando. Há vários meses, os incêndios vêm ocorrendo em todo o país, devastando muitos ambientes naturais importantes, inclusive as florestas da Amazônia. Diante desse desastre, os movimentos sociais estão denunciando a responsabilidade do agronegócio e cobrando uma mudança no modelo agroalimentar, com base em experiências de produção agroecológica em que as mulheres desempenham um papel de liderança. 

Nos últimos anos, um aumento dos incêndios já vinha acontecendo em biomas onde a pressão para expansão da fronteira agrícola é maior (Pantanal, Amazônia, Cerrado). Estes incêndios, que são criminosos, aumentaram, mas as alterações do clima pioram o alastramento do fogo, pois a estação seca é cada vez mais seca e mais longa. Esse ano, vimos focos de queimadas muito alastrados no país inteiro, atingindo inclusive grandes cidades que não eram atingidas, como São Paulo. E a crise continua. 

A deterioração radical da qualidade do ar está causando problemas respiratórios para muitas pessoas que moram nas cidades, onde vive a maioria da população. No passado, a população rural era a que mais sofria com os incêndios. 

Os incêndios estão destruindo a biodiversidade e o solo, além de prejudicar a regeneração das florestas. Muitos animais morreram, assim como algumas pessoas. Isso sem falar nas perdas econômicas. A situação mais trágica é a da agricultura familiar e das comunidades tradicionais no Brasil, populações indígenas e quilombolas. Muitos agricultores/as, que não têm seguro, perderam quase toda a sua produção de alimentos e de animais, sua infraestrutura e suas casas. 

De acordo com os cientistas, a grande maioria desses incêndios não são fenômenos naturais. A maioria deles começou na mesma semana, praticamente no mesmo dia, em áreas florestais de interesse de multinacionais do agronegócio. Suspeitamos, portanto, que se trata de uma ação orquestrada e que grande parte dos incêndios está ligada ao agronegócio. Eles fazem parte de uma estratégia para destruir a floresta e expandir as terras agrícolas, sem que os culpados tenham que responder por esse crime ambiental. 

Diante da urgente situação, o Governo Federal tomou medidas significativas. Aumentou os recursos destinados ao combate a incêndios e ao Ibama, órgão público responsável pela fiscalização de crimes ambientais, a fim de intensificar os controles e aumentar as multas por esses crimes. O governo também tem um papel de pesquisa e monitoramento, que realiza de acordo com dados científicos, e reconhece que a maioria dos incêndios é de origem criminosa. 

No entanto, essas medidas emergenciais não são suficientes para resolver o problema, que tem suas raízes no domínio do agronegócio sobre a economia e a política do Brasil como um todo – Congresso, Senado, governos regionais e municipais. 

Reação dos movimentos sociais do campo popular 

Uma das ações prioritárias dos movimentos em situações de crise como esta é construir solidariedade com os atingidos, famílias da agricultura familiar, povos e comunidades tradicionais. Constroem campanhas de solidariedade financeiras ou provendo comida e abrigo temporários e luta no longo prazo pela reparação.  

Também organizamos manifestações de rua nas principais capitais do Brasil para denunciar os verdadeiros culpados por essa situação e gerar momentos de diálogo com a sociedade. É uma situação muito trágica, mas que serve também para reafirmar algumas pautas históricas dos movimentos sociais e do campo popular. Por exemplo, que o governo federal destine mais recursos para a agricultura familiar, que alimenta de fato o país, em vez de favorecer dez vezes mais o agronegócio – um modelo que não gera emprego, tem um impacto ambiental enorme e comprometido a saúde das pessoas. 

Alternativas agroecológicas e feministas 

No mundo inteiro, os movimentos lutam por essa forma de fazer agricultura que esteja alinhada aos fluxos da natureza e a reprodução da vida, por exemplo, sem usar agrotóxicos, semente transgênica ou adubos e fertilizantes químicos. A agroecologia é composta por um tripé: é uma forma de fazer agricultura, uma forma de pensar a ciência e é também um movimento social em favor de um modelo de produção que ofereça uma resposta comum aos problemas sociais e ambientais. 

Como forma de fazer agricultura, existem princípios agroecológicos envolvidos neste fazer: o não uso de agrotóxicos, de semente transgênicas ou de adubos e fertilizantes químicos; e práticas que têm impacto positivo sobre o meio ambiente, como uma agricultura mais biodiversa e sistemas agroflorestais. Esses exemplos de práticas agroecológicas são formas de produzir alimentos que cuidam das florestas, das águas e dos solos e também alimentam os animais.  

A agroecologia é também um conhecimento científico cada vez mais presente nas universidades, mas que respeita e dialoga com os conhecimentos de povos e comunidades que fazem agricultura tradicionalmente. E é um movimento social porque agroecologia não pode ser apenas um conjunto de práticas -  se fosse, poderia ser apropriada facilmente pelo capitalismo, sem atuar em nada para transformação das relações sociais. Achamos que o modelo alimentar precisa ter respostas também para os problemas sociais, não apenas ambientais.  

Então a agroecologia tem em si pautas sociais como a pauta da reforma agrária, luta pelo fim da violência contra as mulheres, pela titulação dos territórios quilombolas e demarcação das terras indígenas no Brasil. Sem elas, não existe sistema agroalimentar que seja de fato ambientalmente e socialmente justo. 

Um exemplo de resistência agroecológica e feminista são as agricultoras da Rede Agroecológica de Mulheres Agricultoras da Barra do Turvo (Rama), um município que fica no Vale do Ribeira, no estado de São Paulo. 

A Rama é uma rede de 70 mulheres que escolheram trabalhar com agroecologia pelo bem da sua saúde, das suas famílias, porque se relaciona mais com a forma tradicional delas de fazer agricultura nos territórios quilombolas onde elas vivem. Estas mulheres produzem uma diversidade enorme de alimentos para alimentar suas famílias, mas também para vender através de uma rede de economia solidária com grupos de consumo da capital, São Paulo.

A renda gerada por essa atividade possibilita que elas continuem em seus territórios e que não precisem migrar para a cidade. E a presença delas nesse território é muito importante para proteção do mesmo frente ao avanço do agronegócio. A Rama não é apenas o lugar onde as mulheres se encontram para plantarem, trocarem sementes e comercializarem juntas, é também um espaço de conscientização onde falam sobre os problemas como violência contra mulher e falta de políticas públicas no município. 

É muito frequente nos territórios as mulheres serem majoritárias nos projetos agroecológicos e nas lutas contra o avanço do extrativismo. Este protagonismo não é por acaso. Historicamente, pela divisão sexual do trabalho, foi delegado às mulheres em muitos lugares o papel do cuidado, da preocupação com a saúde e o bem-estar, não só da sua família, mas também do entorno, dos animais, do equilíbrio ecológico.

Antes de pensar no dinheiro que elas poderiam ganhar, por exemplo, cedendo parte de sua terra para essas empresas, elas pensam no cuidado com aquele território. Também guardaram muitos saberes sobre plantas medicinais, cuidados com animais de pequeno porte e estratégias de manejo agroecológico.  

As críticas às falsas soluções do “capitalismo verde” 

O capitalismo é o maior responsável pela crise ambiental que é muito grave e já está mudando a forma como a gente vive na terra. Nos últimos anos, ele tem colocado mais força em uma nova face dele que seria o capitalismo verde com uma forma de negócio que guarda a mesma racionalidade econômica, mas com empreendimentos que supostamente são responsáveis ambientalmente, por exemplo, com o avanço das energias renováveis ou do mercado de carbono.  

A Marcha Mundial das Mulheres e movimentos do Sul Global como um todo se opõem porque, nos territórios, ele gera o mesmo grau de impacto do que as antigas formas de exploração da natureza como petróleo, carvão ou a mineração: avanço sobre as terras do Sul global, expulsão de comunidades, criação de novos ativos no mercado financeiros. 

Quando se trata do tema da transição energética, na verdade, as empresas transnacionais continuam explorando carvão, petróleo e gás, e estão aumentando também as suas geração de energia renováveis. Não tem sido uma transição energética: tem sido uma expansão energética.  

O capitalismo verde não apresenta soluções reais: no próprio mercado de carbono, muitos créditos são fraudulentos, baseados em projetos de conservação que não estão acontecendo na prática. Além disso, tem um limite do quanto um projeto de conservação ou de reflorestamento podem capturar gás de efeito estufa da atmosfera.

Realmente combater as mudanças climáticas depende fundamentalmente de diminuir a emissão de combustíveis fósseis e mudar as formas de uso da terra. No Brasil, a maior fonte de emissão de gás de estufa é o desmatamento e a forma com a qual estamos fazendo agricultura: combater as mudanças climáticas tem a ver com fazer a reforma agrária e começar a construir outro modelo de produção alimentar no país. Queremos mudar radicalmente a economia para colocar a reprodução da vida em seu centro. 

*Natália Lobo é agroecóloga, militante da Marcha Mundial das Mulheres e integrante da equipe da SOF Sempreviva Organização Feminista. 

O texto é uma adaptação de uma entrevista publicada no Jornal suíço Le Courrier no dia 7 de outubro de 2024 pelo jornalista Guy Zurkinden, com a colaboração de Gaëlle Scüiller, historiadora, militante da Marcha Mundial das Mulheres e também integrante da equipe técnica da SOF. 

Edição: Martina Medina