Por Ivy Wiens
As eleições de 2018 no Brasil resultaram em um crescimento da representação de partidos ultraconservadores e liberais de direita, no Executivo e Legislativo. Isso aconteceu também em São Paulo, Estado onde a coligação vencedora se aproximou da campanha em nível nacional, sob o símbolo de “Bolsodória”. A alcunha foi depois rechaçada pelo governador eleito, à medida que a credibilidade de seu parceiro derretia. Apesar disso, os dois governos vêm atuando de maneira muito similar em suas ações: desmontando o serviço público com reformas administrativas; precarizando as estruturas públicas de gestão, como fundações, institutos e mesmo secretarias; privatizando serviços e territórios sob o disfarce de “parcerias” e “concessões”; legalizando a grilagem e incentivando projetos de morte, como mineração e barragens.
João Dória (PSDB) tentou extinguir a Fundação Instituto de Terras (Itesp) com o PL 529/20, mas não teve êxito. No entanto, as ameaças continuam. O PL410/21, em tramitação na Assembleia Legislativa de São Paulo, prevê o enfraquecimento da fundação, reduzindo suas atribuições, como prestar assistência técnica para todas as famílias assentadas, como as municipais, federais ou privadas, excluindo parte substancial dos assentamentos do estado. O decreto 64.132/19 reestruturou a agenda ambiental, criando a Secretaria de Infraestrutura e Meio Ambiente (SIMA), que agora lida com empreendimentos como projetos de geração de energia e exploração mineral. Parte das atribuições da antiga Secretaria de Meio Ambiente foi absorvida pela Secretaria de Agricultura e Abastecimento, como o Cadastro Ambiental Rural, as ações relacionadas ao manejo agroecológico, roças tradicionais e assistência técnica rural.
O Vale do Ribeira, em São Paulo, atrai a sanha capitalista. Ali, povos e comunidades tradicionais e agricultoras e agricultores familiares mantêm uma relação sociocultural com a natureza, produzindo alimentos saudáveis e reproduzindo sua cultura. Essa relação faz da região o maior contínuo de Mata Atlântica do Brasil, tendo abundância de floresta, água e diferentes substâncias minerais. Portanto, a reestruturação e o enfraquecimento de estruturas de gestão relacionadas à agricultura familiar, regularização fundiária, meio ambiente e infraestrutura promovidas pelo governo paulista são estratégicas para a exploração desse território.
Ao menos três fatos ocorridos na gestão atual e relacionados aos territórios de povos e comunidades tradicionais e unidades de conservação evidenciam graves conflitos existentes na região. Em julho de 2019, por meio de uma ação administrativa, a Fundação Florestal demoliu duas casas de moradores tradicionais da comunidade caiçara Rio Verde/Grajaúna, na Jureia, e uma terceira habitação só foi poupada porque uma das moradoras estava grávida. O Estado contesta a tradicionalidade da família que está há oito gerações naquele território, como comprovado por farta documentação. Os moradores conseguiram suspender o processo de demolição em uma ação judicial, mas o mérito ainda está tramitando, o que gera insegurança na comunidade. Este é um caso icônico que caracteriza racismo ambiental, um problema muito presente na região, denunciado em manifesto do Fórum dos Povos e Comunidades Tradicionais do Vale do Ribeira.
Em maio de 2020, durante uma operação da Polícia Ambiental e da Fundação Florestal para fiscalização de caça e corte ilegal de palmito, foi encontrado garimpo ilegal de ouro no Parque Estadual Intervales, em Sete Barras, resultando no assassinato de um guarda-parque. A área está próxima a um assentamento da reforma agrária e de uma aldeia do povo Guarani, colocando em risco a vida dos moradores. Em janeiro de 2021 aconteceu outro flagrante de mineração de ouro, dessa vez no Parque Estadual Turístico do Alto Ribeira (PETAR), sem conflito armado.
A criação do PETAR, no final da década de 50, expulsou muita gente da terra, além de criar conflitos fundiários nunca resolvidos. Os agricultores que resistiram fazendo suas roças acumulam multas ambientais e casos de abordagem violenta da polícia. Isso motivou a maior parte das famílias a se envolverem com atividades de turismo de base comunitária, como monitoria, hospedagem e alimentação. Nesse que é um dos parques mais visitados do estado, inclusive por escolas e universidades, o turismo só existe graças à organização da população local. Recentemente o governo do Estado iniciou o processo para a concessão de uso e serviços dessa unidade de conservação. Até o momento, não houve um espaço de diálogo qualificado para que a população atingida entenda a proposta e possa decidir sobre ela. O turismo de base comunitária não aparece como opção nos documentos do governo. Os requisitos previstos na Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) sobre o direito à consulta livre, prévia e informada não foram respeitados em relação às comunidades quilombolas e caboclas presentes no território. Da mesma maneira, o Protocolo de Consulta Prévia dos Territórios Quilombolas do Vale do Ribeira/SP foi ignorado.
A resistência a esses ataques acontece graças aos movimentos orgânicos locais, com apoio de parceiros. A luta pela não construção da Usina Hidrelétrica Tijuco Alto, processo que tramitou por 30 anos junto aos órgãos responsáveis, simboliza a força dessa população, que venceu uma das famílias mais ricas do país. Os movimentos são diversos e se apoiam nas lutas concretas: contra empreendimentos de geração de energia e mineração, contra a concessão de Unidades de Conservação, em prol da regularização fundiária, dos direitos de povos e comunidades tradicionais, da agroecologia, entre outros.
No final de novembro, aconteceu um encontro no Quilombo Caçandoca, em Ubatuba, promovido pela Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (CONAQ), em parceria com a SOF Sempreviva Organização Feminista, CTA Zona da Mata Feminista e ISA Instituto Socioambiental. A atividade reuniu mulheres quilombolas, a maior parte do Vale do Ribeira, para aprofundar as reflexões e fortalecer a organização popular para o enfrentamento ao racismo, ao machismo e todas as formas de opressão geradas pelos interesses do capital.
Nesse diálogo, a resistência das mulheres ficou evidente a cada reflexão compartilhada. Exemplo disso é a prática das roças de coivara, que envolve conhecimentos sobre os ciclos da natureza, a escolha das áreas a serem manejadas, o cuidado para a manutenção das sementes crioulas, as festas para celebrar e agradecer o alimento, tudo o que forma o chamado Sistema Agrícola Tradicional Quilombola, reconhecido como patrimônio cultural imaterial brasileiro desde 2018. O Poder Público tem a responsabilidade de apoiar a salvaguarda desse sistema, mas, como visto, não tem cumprido seu papel. Essa produção de alimentos saudáveis e carregados de história e luta tem chegado até as periferias de São Paulo e de municípios do Vale do Ribeira durante a pandemia graças a uma conexão militante e solidária.
Desde a redemocratização, este é o momento mais difícil para quem luta por justiça socioambiental, inclusive nas políticas públicas estaduais. Por isso, precisamos estar atentas e fortes, buscando a resiliência na luta coletiva. Axé!