As queimadas promovidas por latifundiários na Floresta Amazônica alertaram a sociedade brasileira e todo o mundo sobre o avanço do capital sobre os territórios brasileiros, legitimadas e incentivadas pelo governo Bolsonaro. Esse texto apresenta uma crítica feminista à esse modelo de destruição.
*Por Natália Lobo
A natureza e os bens comuns são elementos centrais na nossa luta feminista. Segundo a Economia Feminista, paradigma que temos debatido muito nos nossos espaços militantes, nós somos interdependentes como pessoas, e ecodependentes na relação com a natureza. O trabalho das mulheres, que é invisibilizado, garante a sustentabilidade da vida, da mesma forma que a natureza é a base de sustentação da vida, aquilo que torna possível que as comunidades e pessoas existam e se reproduzam. Nos reconhecer enquanto interdependentes e ecodependentes é fundamental na nossa estratégia de luta, e temos afirmado que a libertação das mulheres está intimamente ligada com a autonomia dos povos sobre suas vidas e seus territórios.
A sociedade está vivendo um momento do neoliberalismo em que a contradição entre o capital e a vida se apresenta como nosso maior conflito. Além de explorar nosso trabalho, o capitalismo nessa fase tem avançado cada vez mais sobre nossos corpos e territórios, expandindo o controle sobre nossas vidas e sobre as bases que a sustentam. Por este motivo, o que tem ocorrido na Amazônia é muito importante para o nosso debate feminista. O avanço do agronegócio e da mineração sobre a floresta é motor de um modelo que, nós sabemos, causa destruição, morte e precarização da vida das mulheres.
O ritmo de destruição dos nossos bens comuns tem sido cada vez mais rápido no Brasil, o que coloca a questão da Amazônia no centro de muitos debates, nacionais e internacionais. Nós, mulheres, estamos atentas a isso há muito tempo. Quando os empreendimentos de mineração e agronegócio chegam, as mulheres são as primeiras a terem a vida afetada pela perda de terra para produção de alimentos para o autoconsumo, pela privatização da água, assim como pelo aumento da violência e da exploração sexual.
Por isso nos preocupa muito o fortalecimento desse modelo, impulsionado pela política do governo Jair Bolsonaro: com a diminuição da fiscalização ambiental, a flexibilização de leis que garantiam a conservação e a retirada de direitos das comunidades, o incentivo a atos de violência e destruição por parte de latifundiários e donos de empresas. Acompanhamos em 2019 no Brasil uma escalada de violência contra comunidades, lideranças e até agentes de órgãos ambientais (como o Ibama). No dia 10 de agosto deste ano, fazendeiros do município de Nova Progresso, no Pará, marcaram a ação que denominaram de “Dia do Fogo”, onde combinaram de realizar incêndios de forma orquestrada. Os incêndios afetaram enormemente a população e uma unidade de conservação da região. Os próprios fazendeiros assumiram que se sentem amparados pela política do governo federal para tomar tais ações: afirmaram que a data tinha o intuito de mostrar para o presidente que eles “querem trabalhar”.
O caso de Nova Progresso é emblemático dos tempos em que estamos vivendo, mas sabemos através de dados do INPE – órgão que está sendo sistematicamente atacado por Bolsonaro – que o número de queimadas aumentou na Amazônia inteira. O número de focos de incêndio triplicou em relação ao mês de agosto de 2018, e 1.701km² ( o equivalente a 170.100 campos de futebol) de floresta foram desmatados. A ocorrência de incêndios naturais na Amazônia é muito rara devido a umidade, então é certo que esse aumento não tem relação com alguma possível alteração no clima deste ano. Eles foram ocasionados como um instrumento de desmatamento, com o intuito de aumentar ainda mais a expansão territorial do agronegócio. Depois da queimada, os latifundiários avançam para dominar mais terras, com mais violência. Os incêndios também aumentaram em quase todos os outros biomas brasileiros e estão ocorrendo também em países vizinhos, na Amazônia Boliviana e no Pantanal Boliviano e Paraguaio.
Estes casos mostram que este tipo de ataque à vida e às comunidades tem se intensificado não só no Brasil, mas também em outros países da América Latina. A ascensão da extrema direita no Brasil é parte de uma dinâmica internacional, e que impacta particularmente a nossa região, legitimando e incentivando o avanço das fronteiras do agronegócio e da mineração. Por este motivo, nossas lutas também são construídas regionalmente: contra as empresas transnacionais, a financeirização da natureza, a privatização e militarização de nossos territórios, a violência racista e a criminalização dos movimentos sociais. A Jornada Continental Pela Democracia e Contra o Neoliberalismo tem sido um espaço de afirmarmos que nossa estratégia de luta para estes tempos deve necessariamente ser conjunta, e a solidariedade com o povo venezuelano na luta contra o imperialismo estadunidense tem sido um exemplo disso.
Os governos e empresas ignoram os recentes crimes da Vale em Mariana e em Brumadinho e seguem colocando a vida em risco com esse modelo destrutivo. Eles querem entregar a Base de Alcântara aos Estados Unidos, afetando os povos quilombolas no Maranhão e acabando com nossa soberania. Não podemos permitir que a extração e a exploração predatória que já é um problema, se torne regra. Não admitimos a submissão do nosso povo e do nosso país aos interesses dos Estados Unidos. Queremos viver em um país soberano e que coloque a vida em primeiro lugar!
A ação das queimadas na Amazônia foi largamente noticiada e gerou rejeição e indignação em diversos setores da população. O governo Bolsonaro começou a ser muito pressionado por organismos e movimentos nacionais e internacionais. Como resposta a estas pressões, o que eles tem nos apresentado é mais das falsas soluções do mercado, que não resolvem os problemas reais da vida das pessoas. O Ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, depois de receber inúmeras críticas pela falta de política ambiental que culminou no aumento vertiginoso dos incêndios, tem mantido um discurso de que só poderemos manter a Amazônia preservada se fizermos ela gerar lucro para as empresas. Em coluna para o Jornal Folha de São Paulo, o ministro afirmou que: “Durante muito tempo se defendeu que a floresta em pé vale muito mais do que deitada. Todos concordamos com isso. Porém, para que esse discurso se concretize, é preciso gerar valor efetivo à biodiversidade: investimentos privados, patentes, pesquisa e desenvolvimento, cadeias produtivas e tudo mais que faça com que valha a pena preservar.”
Este tipo de discurso já é um conhecido dos movimentos que lutam pela agroecologia e pela defesa dos bens comuns. Sempre que urge a necessidade de conter a devastação ambiental, os agentes do mercado nos oferecem essas falsas soluções. Essa ideia de que a floresta precisa gerar dinheiro para que “valha a pena” preservá-la ignora o fato de que as comunidades tradicionais tem sobrevivido historicamente em harmonia com a floresta justamente por estarem em luta contra sua privatização.
Sabemos pelos relatos de comunidades que já tem experiências da dita Economia Verde – o mesmo capitalismo de sempre com maquiagem de sustentabilidade – em seus territórios, notadamente no estado do Acre, que este tipo de desenvolvimento não gera nenhum benefício para as comunidades. Ao aceitarem que a floresta seja vendida na bolsa de valores, através dos créditos de carbono, as comunidades perdem seu direito ao território, recebem limitações nas suas práticas tradicionais de agricultura e começam a se sentir mais vigiadas e controladas por mecanismos de fiscalização.
Portanto, em termos de política ambiental os governos neoliberais têm apresentado apenas duas opções: destruição completa da natureza e dos bens comuns em nome de mega empreendimentos do agronegócio e da mineração, ou financeirização da natureza que culmina em um controle absoluto dos modos de vida das comunidades. Na economia verde, esses são caminhos que se complementam em uma lógica de compensação que só aprofunda a lógica da acumulação capitalista.
Como feministas temos rechaçado estas duas opções, afirmando que nenhuma delas servem para ser um projeto emancipatório para as comunidades e para as mulheres. No mundo que queremos viver, e lutamos para construir, a relação com a terra é construída através da agroecologia e da soberania alimentar e energética. As lutas que travamos para isso são amplas, como a luta pela reforma agrária, mas também estão sendo feitas nas vidas cotidianas das mulheres na construção dos comuns: no trabalho em mutirão, na manutenção dos bancos de sementes, nas cozinhas coletivas.
Com lutas e práticas, mostramos que temos um projeto de longo prazo para a sociedade, que envolve destruir o capitalismo patriarcal e racista, mudar radicalmente nossa relação com a terra e com os alimentos e organizar a economia colocando a vida em primeiro lugar. Não admitimos ter uma vida melhor só quando atingirmos todos os nossos objetivos. No caminho até eles, estamos construindo formas de vida melhores enquanto lutamos contra a privatização de nossos territórios e bens comuns, construímos a agroecologia e o feminismo e afirmamos que nossos corpos, vidas e territórios não estão à venda.
*Natália Lobo é agroecóloga, militante da Marcha Mundial das Mulheres e assistente de pesquisa do IRD (Institut de Recherche pour le Développement).