Neste mês de julho em que reafirmamos a resistência das mulheres negras latino americanas e caribenhas, aqui no Brasil, especialmente o dia 25 de julho, marcado pelo Dia de Tereza de Benguela, rainha do Quilombo de Quariterê, no Mato Grosso, publicamos esta entrevista com a escritora mineira Ana Cruz, que no último ano lançou seu novo livro de poesias “Insurreiças Mulheres de Minas”.

Em seu último livro, os textos nos apresentam às vozes de mulheres que há tantos anos resistem e não se rendem às opressões racistas, patriarcais e capitalistas, vozes que evocam a potência das periferias como lugar de produção intelectual, cultural e econômica.

Ana Cruz é a autora do poema “No toque do tempo” que inspirou o título da recente publicação da SOF “Um Meio Tempo Preparando Um Outro Tempo”, livro que relata experiências de mulheres de diferentes territórios do Sudeste Brasileiro na agroecologia durante a pandemia, e que assim como a escritora, possuem a arte de tecer resistências e formas de existir em conjunto, possibilitando que a vida em seu amplo sentido siga seu curso.

Ana Cruz é uma artista multimídia, especializada em Cultura Afrobrasileira e Autora de livros como E feito de Luz (1995), Com o perdão da palavra  (1999), Mulheres Q’ Rezam (2001), Guardados na memória (2008), entre outros títulos. Além disso, em 2011 lançou o projeto Mulheres Bantas, Vozes de Minhas Antepassadas, que incluiu um seminário sobre literatura afro-brasileira e o lançamento de um DVD com leituras de seus poemas.

A escritora é natural de Visconde do Rio Branco, Zona da Mata em Minas Gerais, onde viveu até por volta de seus 12 anos na roça de sua família, um pequeno sítio. Com a ditadura militar, seu pai que trabalhava na usina de cana de açúcar da cidade perdeu seu emprego e em meio ao clima violento da repressão, a família precisou migrar para Volta Redonda, Rio de Janeiro. Em meio a efervescência política e cultural da cidade, Ana Cruz inicia sua trajetória como militante dos movimentos de resistência como Movimento Negro Unificado e também o movimento feminista.

Nesta entrevista Ana Cruz retoma alguns dos fios que teceram suas (re)existências e insurreições:

O lugar de sua escrita, da memória e ancestralidade

Apesar de a minha literatura ficar parada por muitos anos, eu ganhei meu primeiro concurso aos 11 anos em Minas Gerais, saí no jornal na cidade. Nesta idade eu já participava de roda,  eu sou de um tempo que escola fazia muita roda de poesia, de leitura. Nossa paixão pela leitura surgiu em casa, onde sempre se leu muito. Foi com meus pais que aprendi o gosto pela leitura. Também na escola a gente lia muito e contávamos muitas histórias. Às vezes depois do recreio, sempre às 9 da manhã numa escola rural, nós fazíamos roda de poesia. Era muito interessante.

Como é importante esse contato com a literatura na infância, seja lendo um gibi ou qualquer outra coisa, a leitura é uma coisa fundamental. O gosto pela leitura e pelas histórias nasce com a infância, e a questão negra traz consigo esse elemento de ter muita história. Na minha casa contava-se muita história, dos antepassados, das dificuldades, das resistências.

Minha mãe também era bordadeira, bordava pra cidade toda, mesmo morando na roça, e falava muito da infância dela, dos antepassados, dos pais dela, o que ela conheceu sobre os avós e seus enredos sobre a escravização e suas violências. Minha mãe dava muita importância para a gente sempre se impor enquanto pessoas negras, de sempre valorizar nossa inteligência, de falar do meu bisavô, dos meus avós, da minha tia avó Onofrina, da nossa linguagem.

Aliás, minha tia avó Onofrina morreu com mais de 100 anos, era uma mulher poderosa. Tem um poema que eu dedico a ela, então é muito interessante essa relação da memória como a minha família, eu fico muito honrada por isso. Meus pais tinham essa estima por serem negros, esse conhecimento ancestral, essa ciência, a facilidade de construir as coisas e relações.

Por exemplo, minha mãe alfabetizou todos os seus irmãos e só depois foi para a escola. Tem essa energia, essa coisa do conhecimento, isso me chama muito a atenção. Essa independência da escola, no sentido de que se você não tem acesso, ou melhor, se não te deixam ter acesso, você constrói a sua escola. Está nesse lugar de preservação de cultura, de memória, no sentido de que a memória faz a diferença porque ela não te deixa perder o seu pertencimento.

Saberes e ciências milenares de África

Eu me considero testemunha de que minha família e todo aquele povo negro que morava no nosso lugarejo chamado Fazenda Jequitibá, que na verdade era um grande quilombo, traziam em sua herança de antepassados toda a cultura desenvolvida no continente africano  ao longo dos milhares de anos antes da escravidão. Neste novo livro eu falo sobre isso em vários poemas.

Minas é revolucionária na política, seja para o bem, seja para o mal, no sentido de que os mineiros são antenados na política. Há aquela política dos coronéis e suas disputas entre famílias e famílias.

No texto ‘’Graças às galinhas” do meu último livro Insurreiças Mulheres de Minas eu conto sobre essa memória de minha cidade na época da ditadura. Devido a um boicote na usina de cana de açúcar que veio a falir, nós precisávamos vender galinhas e abóboras na cidade para fazer dinheiro. Criança tem memória, eu devia ter uns 5 anos, nós vivíamos no meio dos animais. O sindicado dos trabalhadores rurais tinha sido fechado pelo regime, e mesmo assim você via a força deste pequeno povoado para garantir a sobrevivência.

“Que agonia meu Deus, assistir minha tia aflita, torrando num imenso forno de barro de assar quitandas, centenas de livros. Transformando em cinzas tantas ideias que revolucionavam a consciência de classe.

(…) Fiquei desalentada num silêncio gritante, querendo entender aquilo que se passava. Porém não recebendo nenhuma explicação como conforto, chorando fui juntar-me às galinhas, que me ampararam com olhos úmidos de ternura.”

(Poema “Graças às galinhas”)

A Zona da Mata sempre foi uma efervescência política, e meus pais nasceram em Ubá, meu pai e minha mãe eram de origem indígena e negra. Todas essas vivências foram uma escola para mim e me moldou para que aos 11 anos eu pudesse ganhar meu primeiro concurso literário  com meu texto em que falava sobre minha cidade.

Os impactos da migração e do racismo no pertencimento ao espaço

Por isso é muito triste quando você migra do seu lugar de origem, tudo vira de cabeça pra baixo e é uma situação de muita dor porque você perde completamente o seu pertencimento.

Imagina, um povo que vem de uma condição de escravizado, de refugiado, enfim, finalmente se encontra em uma situação de segurança apesar de todo o racismo, que está por toda parte, mas mesmo assim você está em uma grande comunidade. Você sente que faz parte daquele chão, você nasceu ali, colocou toda sua energia, está integrado a ele.  De repente você sai daquele lugar vem para viver em uma periferia que não tem água direito, que não tem esgoto, para viver “abrigado” em barracos. Isso é muito dolorido. Quando nós fomos para Volta Redonda sentimos isso.

Isso gerou um vazio que eu só fui conseguir resolver mesmo estudando, só em 2013, depois de já ter publicado 3 livros. Veja bem, depois do meu terceiro livro eu entendi porque eu tinha um buraco, sabe?

Então você vê como a arte é importante para resolver, para você ir fundo e descobrir o que dói tanto, o porque das coisas não fazerem sentido, sem  alegria, por mais, que muitas vezes você se forme, leia, milite nos espaços de construção em que acredito, é muito difícil conviver com essa sensação de não pertencer a lugar nenhum, não se sentir inteira, integrada.

Militância política e o trabalho na área sindical

Eu cheguei à cidade muito frustrada porque saí de um lugar com o aporte cultural que nós tínhamos, com a vida boa, no sentido de muita fartura, da vida na roça, frutas, verduras, animais, escola boa; e fui para uma cidade como Volta Redonda. Foi um choque cultural muito grande, e assim foi durante uns dez anos.

Meus pais já eram mais ou menos militantes, eu fui conhecendo os movimentos, me engajei em projetos das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) e aí comecei minha trajetória como militante. Nessa época Volta Redonda era um caldeirão das lutas sociais. Tinham os prefeitos biônicos indicados pela ditadura, então a luta era muito presente e uma grande escola para nós.

Ali eu também me envolvi com o feminismo negro mais organizado no Movimento Negro Unificado (MNU), com mulheres como Lélia Gonzáles, mulheres militantes ligadas ao campo da educação. Inclusive participei da construção do nosso primeiro encontro em 1989.

Havia também as Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) com as quais eu atuei por muitos anos, nas pastorais com a teologia da Libertação, a gente fazia muitas atividades políticas de formação. Foram processos que deram suporte para a fundação da CUT e do PT nos anos 80 quando eu também fui trabalhar na área sindical, trabalhar na direção da CUT. Neste tempo fui para a capital, no Rio de Janeiro.

Eu tenho muito orgulho dessa história, isso mudou a minha vida. Posso ter várias críticas, mas isso fez a diferença na minha juventude e eu vim de uma juventude que tinha projetos, sabe? Claro que nem toda a juventude estava engajada, mas pelo menos havia um projeto mais amplo. A gente não ligava para ter um tênis de marca importante, a gente queria ir para as reuniões, sentíamos que éramos um grupo, que tínhamos lugar, e isso é muito importante para a juventude. É esse lugar da busca por ideais.  

Depois desse processo todo eu coordenei a campanha do Lula com um comitê sindical pela CUT onde trabalhei por 18 anos. Fiz grandes amizades, grandes projetos na área de formação, participei na área de construção de escolas.

Um processo que infelizmente não foi continuado devido às crises do PT nos sindicatos, essa saída da esquerda das periferias impactando também no trabalho das CEBs, o que impactou muito na formação das pessoas, na consciência política, de gênero, raça, classe. Essas igrejas tinham um papel fundamental, de formação e de qualificação, de consciência, na construção das associações de moradores, no saneamento básico, a partir de uma releitura renovada do evangelho.  Com isso, o pessoal carismático, neopentecostal, da teologia da prosperidade, do Jesus mercantilista, respaldado pelo neoliberalismo, foi se apropriando de tudo para construir outra consciência com as pessoas nas periferias. Isso é muito profundo e cruel porque silencia, corrobora com mentalidade do “sacrifício” em prol da economia.

O retorno para a escrita

Depois de vivenciar então todos esses projetos eu decidi retomar minha escrita depois de deixar a CUT por volta de 2004 para tocar meu projeto de mulheres negras. Para mim foi uma libertação porque eu queria tocar meus projetos, fazer novos cursos, fazer um aprofundamento na questão da história africana e ter a coragem de retomar meu projeto com a literatura.

Os primeiros 10 anos foram de um processo muito difícil, ainda mais para uma mulher negra, que ninguém abre mercado, para mim e tantas outras mulheres negras do meu tempo que produziram todo esse conhecimento, com muita luta para construir essa categoria de mulher negra, juntar pessoas pardas e negras, para compor uma categoria só. E para nós que vivemos de literatura é muito dolorido, nossa condição financeira continua a mesma da época da escravização, nós continuamos morrendo na mão do Estado e não detemos meios nenhum de produção, nem funerária a gente tem, como diz uma amiga minha.

As muitas vozes das mulheres negras e a coletividade na escrita

Tudo que nós produzimos nesses anos todos, grande parte surge com mulheres como Lélia González. Ela que trouxe a questão da decolonialidade e América Latina, no feminismo. E é incrível porque se trata de uma mulher que estava junto com a gente, militou junto, que apontou as contradições, as diferenças de se pensar a questão racial no Brasil e nos Estados Unidos, por exemplo.

E à medida que a gente não detém os meios de produção, que não temos dinheiro, a mídia continua decidindo qual negro vai falar, quem vai vender, quem é o melhor rapper, quem é a melhor escritora, e por aí vai. Uma mídia que está a serviço do racismo estrutural, que incentiva os personalismos, os individualismos no discurso político, gerando despolitização. A nossa luta racial é uma luta política, ideológica, anti sistêmica.

Artista precisa se alimentar desse lugar da coletividade para fazer arte contra hegemônica, não existe só a pessoa, só a artista e só a intelectual. Para mim, o lugar que alimenta a minha fala, vem de várias histórias que eu construo na trajetória da militância. Eu trabalho com essa questão da memória e identidade negra, da memória ressignificada, mas também desse lugar que você vai descontruindo com as demais pessoas, desse lugar que você se entende, se descobre sujeito a cada dia, que você se descobre enquanto potência, só se descobre potencialidade na coletividade.

Nossa literatura é politica

No âmbito da minha literatura, para mim é um desafio pensar nisso, porque hoje tem 3 dissertações de mestrado e 2 teses de doutorado que falam sobre o meu trabalho. Para mim isso não é uma vaidade, porque na verdade eu compreendo a partir da narrativa, da pesquisa sobre o trabalho que eu estou fazendo. Como eu compreendo o que estou fazendo e o que a academia compreende? Será que tem feito sentido?

É através dessas dissertações que eu percebo a importância da minha obra e o quanto ela contribui na perspectiva do conhecimento científico e de como ela pode contribuir para o aprofundamento sobre vários questões que visam a construção de sujeitos na contemporaneidade.

Eu considero que tem sido um enorme desafio para esses acadêmicos colocar os escritores e as escritoras negras nesse lugar de conhecimento que o racismo por séculos buscou inviabilizar. Mas essa foi uma luta que as universidades públicas abraçaram junto com gente da academia, negras e brancas. Desde de 2011 temos uma antologia construída ao longo de 10 anos, que se chama Antologia Crítica: Literatura e Afrodescendência no Brasil. São quatro volumes onde se faz o resgate dos escritores e escritoras, pois negros e negras estão escrevendo desde os tempos Coloniais.

Eu acho que a literatura tem esse papel, a nossa literatura tem que ter um corte universal, estar no local, falar da especificidade, mas uma especificidade que atravessa todo mundo, quando você lê e seleciona o texto.

A poesia, a literatura tem que ter esse papel universal e fazer essa formação de nação, e isso são muito importante porque ela chega onde as políticas públicas e ideológicas não chegam, elas abrem essa porta. Faz com que você tenha outra visão de mundo, de entender essa dimensão de humanidade das pessoas, no caso das pessoas negras em função do racismo e toda essa exclusão.

A literatura enquanto caminho para compreender a natureza dos tempos

No meu poema “No toque do Tempo”, que vocês também publicaram no livro da SOF, eu fui por uma reflexão do tempo em que você precisa para se preparar pra dar saltos, a ideia do tempo para cada pessoa é diferente. Pensei também na questão da informação, quanto menos informação eu tenho de visões de mundo mais tempo eu vou precisar pra compreender uma situação, uma realidade.

“Batida do tambor
marcando o tempo.
Sentir os acontecimentos
entre uma batida e
outra, um meio tempo
preparando um outro tempo.”

(Poema “No toque do Tempo” que inspirou a publicação da SOF)

E quando você adquire aquela consciência que chega com o tempo, você sente como se algo de impulsionasse para outro tempo, para outra visão de mundo. Só é possível inaugurar um novo tempo quando você se constrói, quando você tem uma consciência construída em outros tempos. Essa ideia de circularidades e dos processos dos tempos para cada coisa e que não é cronológico.

Quando penso nesse tempo pandêmico, nós fomos pegas de surpresa com o vírus, mas nem tanto, porque sabíamos como está o mundo, a devastação dos recursos. Temos que desmascarar essa ideia de que a natureza é uma mãe romantizada, que chora e se sacrifica pela cria. Na cultura africana, o chão e o tempo são sagrados, não é essa visão colonizadora que o conhecimento está acima, não. O conhecimento vem do chão, o chão é o conhecimento.

Entrevista e Edição por Natália Blanco

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