Por Tica Moreno*, originalmente publicado no Brasil de Fato

As mulheres em Moçambique denunciam viver em uma situação de terror. Desde 2017 circulam, por meios informais, imagens e informações sobre a violência em Cabo Delgado, na região norte do país. Ataques a casas, comércios e comunidades, sequestros e assassinatos que se agravaram recentemente.

Os movimentos e organizações sociais, como o Fórum Mulher que compõe a Marcha Mundial das Mulheres em Moçambique, começaram a ampliar a denúncia, buscar explicações e tornar a situação visível, tanto nacional como internacionalmente. E, neste processo, nos convocam a todas, como militantes da Marcha Mundial das Mulheres, à solidariedade.

Esse texto é uma pequena contribuição para responder esse chamado, ampliando a visibilidade, no Brasil, das denúncias, análises e ações das mulheres de Moçambique, compartilhadas no último dia 24 de abril, dia de solidariedade feminista internacional contra o poder das transnacionais.

Cabo Delgado é um território rico em gás e minerais, recentemente foram identificadas mais reservas de petróleo e pedras preciosas, como o rubi, além da biodiversidade das florestas. Muitos são, portanto, os interesses de empresas transnacionais na exploração do território. Transnacionais petroleiras como a Total tem atuação neste território, assim como a mineradora Montepuez Ruby Mining, com 75% de participação da GemFields Group, além de haver, também, redes de tráfico de pedras preciosas na região.

As mulheres identificam que o início dos conflitos é simultâneo à descoberta destas novas reservas, e esse é um dos motivos pelos quais insistem em questionar o discurso do governo de Moçambique, que reduz o conflito à religião.

Cabo Delgado é um território em que a maioria da população vive da produção de alimentos e da pesca. Pequenas propriedades em que as mulheres cultivam com técnicas tradicionais de produção, as chamadas Mashambas, compõem uma parte significativa das fontes de alimento e renda. A produção das mulheres é para alimentar suas famílias, e também para a venda no mercado local.

A situação atual é de um enorme contingente da população fugindo da violência. São, pelo menos, 700 mil pessoas que saíram de suas terras. Nos lugares em que chegam falta comida e não há terra para plantar, assim as mulheres não conseguem mais prover os meios de subsistência pela terra, e os homens não conseguem mais pescar nos rios.

Sequestros

Jovens e crianças, homens e mulheres, são recrutados ou sequestrados para o conflito, e as mulheres denunciam não saber informações sobre as pessoas de suas famílias. As meninas e mulheres sequestradas ou recrutadas para o conflito são incorporadas em tarefas da logística e do cotidiano.

Aos homens é prometido acesso aos corpos das mulheres. São muitas as denúncias de estupro e violência contra as mulheres, uma vez mais o corpo das mulheres é usado na guerra. Esta violência é mobilizada tanto pelas forças do governo como pelos grupos armados.

Frente a essa situação, as mulheres moçambicanas em movimento mobilizam coragem e solidariedade. Elas chamam a atenção para a resistência das mulheres de Cabo Delgado, que criam letras de denúncia e utilizam a música como protesto, em espaços públicos e do governo. Elas afirmam que não bastam as doações de comida, roupas e sapatos, pois o que elas querem é paz, voltar para suas casas e terras, reencontrar as filhas e os filhos desaparecidos.

Esta é uma reivindicação fundamental: as mulheres se recusam a ir para acampamentos e assentamentos longe de suas terras porque sabem que, quanto mais longe, mais difícil será voltar. A dinâmica do conflito vai forçando uma redefinição do território, marcado por tanta violência e pela expulsão do povo, e o que abre caminho para mais extrativismo e exploração dos bens comuns.

Racismo

Elas também denunciam o racismo do discurso superficial que é veiculado em alguns meios de comunicação, como se tratasse de uma disputa “tribalista”. As mulheres questionam esse discurso, afirmando que a diversidade étnica é parte da história do povo em Moçambique, e que o conflito não tem a ver com isso, e sim com a disputa pelo território, pelo que está no subsolo, em torno da que há muita manipulação e violência contra as pessoas de todos os grupos sociais e etnias.

As mulheres de Cabo Delgado, e de Moçambique de forma geral, afirmam que é preciso dar visibilidade ao que está efetivamente acontecendo em suas vidas neste conflito armado, ao mesmo tempo em que insistem em desvelar as causas dessa violência generalizada.

Denunciam este modelo de exploração, controlado por empresas transnacionais e grupos ilegais, que avançam violentamente sobre os territórios, os corpos e as condições de vida. Aqui no Brasil, nos somamos, em solidariedade, às mulheres de Moçambique e à sua exigência de paz e de retorno aos seus territórios.

*Tica Moreno é socióloga, militante da Marcha Mundial das Mulheres e integra a equipe da SOF Sempreviva Organização Feminista.