Por Glaucia Marques*
Quando uma pandemia é anunciada, pensar sobre o que é essencial à vida passa a ter um sentido ainda mais urgente. A necessidade da quarentena amplia também o sentido da sustentabilidade da vida, ou seja: o que é preciso garantir para que a vida (não apenas a vida de cada um, mas a vida coletiva) se sustente? O que é preciso produzir? Qual o trabalho envolvido, mesmo que não seja remunerado?
Como circulam os alimentos durante a quarentena
Nas últimas semanas, acompanhamos em São Paulo diversas notícias sobre o fechamento de restaurantes, a destruição de extensas hortas do Cinturão Verde – área de preservação ambiental na região metropolitana de São Paulo – por falta de lugares para escoar, a falência de produtores e mesmo as tantas dificuldades para garantir que esses alimentos fossem doados.
Quem produz no sistema capitalizado (ou seja: a especialização de produção em maior área e menor variedade de hortaliças, tendo alto custo de produção em mecanização, irrigação, insumos e mão de obra para contratos com fornecedores) é quem mais perdeu caminhões de verduras, pois não se concretiza a sua entrega, produzida em maior escala para abastecer restaurantes e grandes mercados.
Houve um aumento de pessoas correndo para grandes mercados de vendas por atacado, tentando se abastecer para o próximo período e resolver suas questões individuais diante da incerteza do futuro.
Por outro lado, também vem sendo notável a quantidade de mobilizações, arrecadações e ativismo, em solidariedade de classe, às famílias e pessoas sem renda, inseridas nos trabalhos informais, autônomas, que se encontram principalmente nas periferias das cidades.
Essa pandemia chega num momento em que algumas políticas que poderiam dar um respiro no abastecimento de alimentos haviam sido drasticamente reduzidas. É o caso do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), política federal criada em 2003 e que vem sofrendo cortes desde 2017. O PAA garantia compras de alimentos pelo Estado, contribuindo com a democratização do acesso aos alimentos. As compras eram ligadas aos órgãos de assistência social e geração de renda no campo e ao Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea).
Este conselho, que era um espaço democrático, responsável por acompanhar as políticas públicas de direito à alimentação, foi extinto em uma das primeiras canetadas desse atual governo. Mais um motivo para exigirmos: fora, Bolsonaro!
O governo de Bolsonaro é um empecilho para a alimentação saudável
A agricultura familiar, responsável por boa parte da produção de alimentos que estão em nossa mesa não é o foco da agenda política desse desgoverno.
Seu maior interesse é desconstruir a segurança e soberania alimentar, tirando o direito dos povos tradicionais de acesso a seus territórios – como temos acompanhado, por exemplo, no Maranhão, com a tentativa de expulsão de quilombolas para uso comercial da base de Alcântara.
Há, também, um interesse evidente do empresariado (ao qual o governo Bolsonaro se alia) na invasão de terras para mineração e na perda de autonomia das comunidades nos territórios.
As populações tradicionais, indígenas e quilombolas, que dependem do território para produzir alimentos para autoconsumo, cultivam uma grande diversidade de alimentos e preservam sementes tradicionais. Ameaçar o território significa, portanto, ameaçar a diversidade.
Enquanto isso, o agronegócio recebe infinitas subvenções. Só nesse ano, 150 novos agrotóxicos foram liberados pelo governo.
Os impactos do vírus da ponte pra cá
Já ouvimos muitas vezes que este vírus ataca a todos sem distinção de classe social. Mas o que vemos, na prática, é que a classe social determina se as pessoas terão que se expor mais ao contágio e se terão alterações drásticas em sua qualidade de vida.
A desigualdade social se aprofunda e cresce a quantidade de pessoas na pobreza, devido às medidas econômicas do governo, que, ao proteger o lucro dos empresários, facilita o desamparo e o corte de direitos dos trabalhadores e trabalhadoras.
Para resolver as questões de alimentação e isolamento impostos pela covid-19, os filhos da periferia trabalham como entregadores, em condições de trabalho precárias.
As mulheres garantem o trabalho doméstico com muita sobrecarga e também os cuidados – nas famílias e comunidades, de forma não remunerada, e nos hospitais, com pouquíssima estrutura, sendo elas a esmagadora maioria dos profissionais de enfermagem brasileiros.
Os moradores da periferia seguem fazendo extensas filas nos bancos, lotéricas e mercados. Com pouca renda, se alimentam da cesta que é básica. Deixam de comprar algumas coisas no mercado, pois o valor triplicou. É, então, muito difícil o acesso à diversidade de alimentos que contribuem com a imunidade.
Esse é o outro lado da moeda: as soluções individuais de consumo oferecidas pelos serviços digitalizados de delivery dependem de todo esse trabalho precário, e garantem a manutenção da vida apenas de uma das pontas envolvidas.
Se essa condição das entregas chega pra ficar, poderia acontecer de outra forma: descentralizada, sem dependência dos aplicativos globais de precarização do trabalho, empregando pessoas com garantia de direitos, em redes de distribuição local.
Nesse sentido, trago como exemplo a organização do Coletivo de Consumo Rural Urbano da Associação Oeste, em Diadema. O Coletivo reúne pessoas voluntárias e trabalhadoras que se organizam para a compra coletiva e entrega de cestas agroecológicas na região de Diadema.
Nesse momento de pandemia, realiza a Campanha Agroecologia e Solidariedade de Classe, com arrecadações online que permitem a compra de alimento direto de agricultoras e agricultores agroecológicos. São distribuídos em cestas, também com serviços de entrega a famílias mais vulneráveis. Um jeito bem diferente e contra hegemônico de organizar o acesso à alimentação.
Por uma circulação de alimentos baseada em solidariedade e acesso à diversidade
As redes solidárias são articulações que favorecem a compra direta. Agricultores e agricultoras agroecológicas, de assentamentos e quilombos, são sujeitos desse processo, junto a grupos urbanos que atuam em busca de um consumo responsável.
Os laços entre as cidades e o campo, as roças e as quebradas permitem maior acesso a alimentos sem veneno, a preços justos, e cria alternativas ao modelo de produção baseado na exploração.
Quem consome também passa a mudar sua postura diante da alimentação. A lógica é outra: não há um mercado que determine o preço do alimento e oferta constante de todos os alimentos. Em vez disso, é a lógica da sazonalidade, os tempos da natureza e as pessoas se alimentando do que houver no tempo da roça e de quem produz.
As cestas agroecológicas nos permitem desbravar a diversidade alimentar que as agricultoras cultivam, de acordo com sua relação cultural com o alimento. Assim, aos poucos, a padronização encontrada nos supermercados vai sendo revista, por ser incompatível com a lógica da vida.
Não sabemos ao certo como será o futuro, mas tudo indica que se prolongará muito esta crise econômica que dificulta a sustentabilidade da vida. Por isso, temos que exigir uma política de abastecimento, com o funcionamento pleno de políticas de compra e distribuição de alimentos saudáveis, como o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE).
E temos que cobrar agilidade dos órgãos responsáveis, que devem ser reconfigurados, passando a entregar alimentos in natura para atender as situações de desnutrição da população mais vulnerável e das famílias – que, agora, têm mais dificuldade por não poder contar com a merenda escolar.
Nos somamos à campanha da Articulação Nacional de Agroecologia (ANA) e dos movimentos sociais do campo e da cidade. A campanha propõe, como solução emergencial, que se destine R$ 1 bilhão para a retomada do PAA e acréscimo de R$ 2 milhões para o próximo ano. Propõe, também, que o PAA seja centrado na modalidade de compra direta, conectada com as organizações de agricultores familiares.
As comunidades e povos tradicionais seguem cultivando frutas, raízes, feijões de uma ampla diversidade. Nas cidades, é preciso ressignificar o sentido da alimentação a partir do que podemos aprender com quem produz perto de nós. Isso é parte do longo e necessário caminho para nos livrarmos da fome e da exploração feita pelas grandes cadeias de produção de alimentos. E para enfim alcançarmos, enquanto sociedade, a soberania alimentar.
*Glaucia Marques é agrônoma e compõe a equipe da SOF Sempreviva Organização Feminista.