Por Helena Zelic e Patricia Cornils para o Brasil de Fato*

Durante esse período de pandemia, em que o isolamento social é uma medida necessária (apesar dos obstáculos impostos por Bolsonaro e seus aliados empresários), a internet aparece como uma solução guarda-chuva para todos os problemas. Mas, a partir dos acúmulos feministas e anticapitalistas sobre comunicação e as tecnologias digitais, colocamos aqui a pergunta: como garantimos nossa comunicação ampla, popular e antissistêmica em uma internet dominada por grandes proprietários? 

A cada dia, uma parte maior do que fazemos envolve um computador – e nossos celulares hoje são quase computadores. Aulas, reuniões, acesso à cultura, uma infinidade de aplicativos de serviços (que só oferecem entregas por preços menores porque precarizam muito o trabalho de seus trabalhadores e trabalhadoras).

Contra os proprietários dos dados
Imagine o volume de informações necessárias para que tudo isso funcione da forma como funciona hoje. Desde as coisas mais “públicas”, como as lives e as notícias, até as que parecem ser mais “privadas”, como as reuniões virtuais, as aulas dadas de forma remota, as pesquisas que as e os cientistas fazem, os dados do auxílio emergencial — tudo isso está em algum computador, em algum lugar. Inclusive, aquilo que a rede apelidou de “nuvem” é, na verdade, uma quantidade de grandes computadores, que chamamos de servidores.

Cerca de 80% dos dados recolhidos, armazenados e analisados em todo o mundo estão em servidores de cinco grandes empresas: Microsoft, Apple, Alphabet (Google, Youtube), Amazon e Facebook (Instagram e Whatsapp). Nós “consentimos” com seus termos de uso sem ler suas letras minúsculas, e, a partir desta brecha (e de outras que não chegaram nem a ser escritas nos termos), nossos dados são vendidos para outras empresas, que nos oferecem uma propaganda “direcionada” – às vezes sobre o novo tênis de uma grande marca, às vezes sobre o novo candidato político de extrema-direita…

Contra os proprietários da comunicação
Por causa da digitalização de tantos aspectos de nossas vidas, a comunicação e a coleta de dados já não são mais coisas separadas. E nunca foram tão imbricadas com a política. Um exemplo disso foi o uso de dados de centenas de milhares de pessoas no Facebook, sem que elas soubessem, por uma empresa chamada Cambridge Analytica, que prestou serviços para a campanha de Donald Trump.

A Cambridge Analytica fechou, mas um de seus fundadores, Steve Bannon, é próximo da família Bolsonaro e trabalha para organizar forças reacionárias e apoiar regimes de extrema direita em vários países. Este método de uso de dados para conquistar e manter governos, muitas vezes com campanhas repletas de mentiras, discursos de ódio e desinformação, segue em uso. Um dos segredos para o funcionamento dessas mensagens é adequá-las a cada público e, para isso, os dados (seu processamento e análise) são fundamentais. Por isso, as empresas estão o tempo todo encontrando maneiras para ter acesso a mais dados sobre cada pessoa. E com nenhuma transparência sobre como e quando fazem isso.

No Brasil, a campanha de Bolsonaro usou redes digitais para ganhar votos e, até hoje, usa este tipo de comunicação para manter seus apoiadores ativos. É só perguntar aos seus conhecidos ou parentes que ainda apoiam o presidente qual é o tema da semana e você vai ouvir barbaridades sobre a pandemia de coronavírus, ataques à democracia no Brasil, ataques contra as ideias e as pessoas que Bolsonaro denomina como “inimigos”. Essa rede não se limita a grupos de WhatsApp, é composta por sites e perfis no Youtube, no Instagram, no Twitter e também por perfis oficiais de parlamentares ligados a Bolsonaro e à própria Secretaria de Comunicação do governo federal, que já usou o Twitter para fazer ataques a pessoas da oposição.

Quando a coleta de dados é feita com a colaboração de governos — aos quais cedemos muitas informações para ter acesso a direitos (como, agora, à renda emergencial) — é ainda mais grave. Um exemplo: a IP.TV, empresa contratada para fornecer plataformas de aulas online para 7,1 milhões de alunos das escolas públicas de São Paulo, Paraná, Amazonas e Pará, tinha antes desses contratos apenas um produto de sucesso: O Mano, aplicativo de streaming de vídeos criado em 2018 para a campanha de Jair Bolsonaro. Qual a garantia de que os dados de milhões de estudantes não serão usados em campanhas políticas de desinformação? No caso da pandemia de covid-19, essas coisas todas se encontram. A desinformação difundida por Bolsonaro e seus aliados é parte de sua política que prioriza os lucros dos empresários em detrimento da vida.

E projetos de lei usam a visibilidade do tema “fake news” para, em vez de aumentar o controle da sociedade sobre quem produz e distribui desinformação, ampliar a vigilância sobre as pessoas comuns. Este é o caso do PL 2630, neste momento na pauta do Senado Federal, sem nenhuma discussão ampla da sociedade. Outra “boiada”, que não pode passar assim.

Mas não é só de internet que se faz a comunicação, inclusive porque muita gente (25% nas cidades e 48% nas zonas rurais) no Brasil ainda não tem internet em casa; e dentre as pessoas que têm, muitas possuem acesso limitado pelos pacotes de internet móvel, que são caros, têm pouca banda e, muitas vezes, restringem o tráfego apenas ao WhatsApp e ao Facebook. A televisão e o rádio ainda são meios de comunicação que fazem parte do cotidiano de enorme parte da população, e são controlados por meia dúzia de famílias.

Entre as rádios e tevês mais conservadoras e as que aparentam ser mais “progressistas” (de acordo com o momento), há em comum uma narrativa reacionária, que oculta a organização popular e prioriza a voz das elites. A Globo, que hoje se afasta de Bolsonaro (porque tenta alavancar uma outra direita), teve muita responsabilidade pelo golpe contra Dilma Rousseff e pela perseguição de Sérgio Moro e da Lava Jato contra Lula.

Quando os movimentos sociais aparecem na mídia, é como baderna, em um flash de poucos segundos, ou ainda como um problema no trânsito ou na “economia”. Quando algo próximo ao feminismo aparece, há duas vias possíveis: ou é para ser maldito por conservadores, ou é banalizado em sua forma mais liberal, e centrado em uma pessoa só, geralmente desvinculada de processos coletivos e populares.

Comunicação popular pela vida em movimento
Por tudo isso e muito mais, é preciso fortalecer as iniciativas e experiências de comunicação popular. Puxados pelos movimentos sociais, por redes e coletivos muitas vezes territorializados, esses meios de comunicação alternativos e militantes visibilizam as alternativas para a sustentabilidade da vida e propõem outra forma de fazer: não hierarquizada, que não fica em cima do muro, com um olhar ativo, participante, coletivo. Isso não foi inventado agora, com a expansão da internet. Há várias décadas já existiam (e ainda existem!) as rádios comunitárias e os jornais populares, muitas vezes com um alcance maior, inclusive, do que o que conseguimos brigando com os algoritmos das grandes empresas de rede social.

Especialmente agora, em que atravessamos uma luta coletiva pela vida, é preciso que a comunicação esteja alinhada com (e seja feita por) as vozes plurais e políticas de quem está na linha de frente do combate ao coronavírus (e sabemos que essas vozes são, principalmente, das mulheres), organizando a solidariedade em cada bairro, lutando pelos direitos trabalhistas, que hoje equivalem ao direito à vida para muitas categorias precarizadas pelo avanço do neoliberalismo, pressionando pelo direito aos dados reais da pandemia no Brasil. 

Se a natureza é um bem comum, se a água, a terra e os conhecimentos são comuns, então devemos entender a comunicação e a internet como comuns. Isso colabora em nossa luta por tecnologias realmente livres e por códigos abertos. E permite que façamos uma comunicação que vá na contramão do modelo hegemônico atual, tanto pela sua forma de fazer, quanto pelo horizonte radical de igualdade para onde ela aponta.


*Helena Zelic e Patricia Cornils fazem parte da equipe da SOF Sempreviva Organização Feminista.