A 3ª Conferência de Políticas para as Mulheres, realizada em Brasília entre os dias 12 e 15 de dezembro, aprovou um conjunto de ações e prioridades que apontam para a consolidação de uma agenda nacional de políticas públicas para as mulheres. A etapa nacional foi o momento de eleger prioridades dentro do II Plano Nacional de Políticas Públicas para as Mulheres a serem executadas nos próximos três anos de gestão, de forma concertada entre União, Estados, Municípios, Organizações Não-Governamentais, Instituições e Movimento Social.
Foi uma conferência histórica, a primeira realizada sob o comando de uma mulher na Presidência da República, reunindo mais de 2500 delegadas em Brasília e convidadas de 11 delegações internacionais, entre elas, a diretora-executiva da ONU Mulheres, Michelle Bachelet. Demonstrando seu compromisso com a construção da igualdade no Brasil, a Presidenta Dilma Rousseff compareceu à abertura da conferência (a única das conferências realizadas em 2011 que contou com a sua presença) onde aproveitou para dissipar qualquer dúvida sobre o futuro da SPM – Secretaria de Políticas Públicas para as Mulheres do Governo Federal, cuja extinção vem sendo alvo de especulação nos últimos meses. A presidenta afirmou que não há a menor verdade nestes rumores e que a Secretaria é fundamental para o seu governo.
Os quatro dias de debates foram intensos, com painéis, rodas de conversa, grupos de trabalho e atividades culturais, além de diversas reuniões setoriais e regionais auto-organizadas pelos movimentos de mulheres. Os espaços de exposição dos Estados e dos Movimentos Sociais evidenciaram a diversidade e a riqueza cultural das mulheres brasileiras, apresentando o trabalho construído pelas mãos das mulheres nas diferentes regiões do país.
Autonomia Econômica e as políticas públicas com os cuidados
Eixo central da 3ª Conferência, a autonomia econômica e social das mulheres foi debatida por 24 grupos de trabalho. Mulheres de todo o Brasil afirmaram que a autonomia econômica das mulheres passa pela implantação de políticas públicas que tratem dos cuidados, com prioridade absoluta para espaços de Educação Infantil e atendimento à população idosa e com deficiência. A garantia de equipamentos coletivos que dêem conta da divisão do trabalho doméstico, como restaurantes populares e lavanderias coletivas, aponta para a necessidade fundamental de reduzir o tempo que as mulheres dedicam para estas tarefas, tempo este que lhes falta para o exercício e a formação profissional, para os estudos e para o lazer.
No entendimento das delegadas, a autonomia econômica passa ainda pela política de valorização do salário mínimo, pela redução da jornada de trabalho para 40 horas semanais, pela regulamentação do trabalho doméstico e pela efetivação da aposentadoria das donas de casa. Neste sentido, foram aprovadas prioridades que visam avançar no marco legal das relações de trabalho e, em particular, do trabalho doméstico e rural.
Autonomia Cultural passa por mídia não-discriminatória
Os debates sobre autonomia cultural priorizaram os eixos do II Plano Nacional que tratam da educação, da cultura e da comunicação. Propostas como a valorização salarial dos(as) trabalhadores(as) em educação, formação e capacitação profissional aos educadores(as) para a promoção de uma educação não-discriminatória, que combata o racismo, a lesbofobia e todas as formas de preconceito e discriminação estiveram no centro da reflexão.
Mas o destaque neste tema ficou para o debate sobre a democratização da comunicação e a necessidade premente de um novo marco regulatório para as comunicações no Brasil. Mereceram atenção das delegadas as propostas de combate à publicidade discriminatória que enfatiza a mercantilização do corpo das mulheres. Da mesma forma, as propostas que valorizam as rádios e TVs comunitárias, a criação dos conselhos de comunicação em todos os níveis foram apontadas como prioridades pela plenária final do dia 15.
Legalização do Aborto marca o debate da Autonomia Pessoal
Temática dedicada a abordar os eixos da saúde das mulheres e do combate a todas as formas de violência contra as mulheres, a autonomia pessoal teve como ponto forte dos debates a proposta das mulheres poderem decidir pela interrupção de uma gravidez indesejada. As discussões realizadas nos grupos de trabalho foram unânimes em defender que nenhuma mulher que praticar o aborto deve ser tratada como criminosa.
A partir deste consenso a formulação final aprovada reconhecia o direito das mulheres afirmando a descriminalização e que essa prática deve ser assumida como parte da assistência integral a saúde das mulheres no SUS, afirmando o papel do poder público para que nenhuma mulher seja punida, humilhada ou maltratada. A posição amplamente majoritária da plenária final reforçou a posição pela legalização do aborto apontando que as mulheres brasileiras exigem do governo e das instituições que este tema seja tratado como uma questão de saúde pública.
Essa definição busca recolocar na sociedade de forma ampla esse debate buscando superar o fato que o aborto virou alvo de ataques nas eleições presidenciais de 2010, resultando no rebaixamento da discussão sobre a política pública que melhor atende à vida das mulheres. Considerando que 2012 é novamente um ano eleitoral, é importante explicitar aqui o recado aprovado pelas mulheres de todo Brasil nesta conferência: “revisão da legislação punitiva do aborto no Brasil, assegurando a descriminalização e a legalização do aborto e o atendimento humanizado na rede de saúde pública do SUS, para que seja garantida a autonomia da mulher e que nenhuma mulher corra risco de morte, seja punida, maltratada ou humilhada por ter feito um aborto”.
Reforma Política e Ministério da Mulher
A autonomia política das mulheres também foi alvo de prioridades votadas nos grupos de trabalho e referendadas na plenária final. Enquanto patina no Congresso Nacional, a reforma política, com voto em lista fechada, pré-ordenada, com alternância e paridade de gênero, foi aclamada pelas 2500 delegadas presentes na conferência. Também foi objeto de aclamação, a proposta que trata da efetivação do Ministério da Mulher já garantida no governo Lula. Ao defender o Ministério, a 3ª Conferência faz um reconhecimento aos avanços nas políticas públicas para as mulheres, conquistados a partir da implantação de mecanismos específicos nos governos municipais e estaduais, e no plano nacional, pelos Poderes Executivos.
“Viver a diferença, praticar a igualdade”
Por fim, mas também de igual a importância, a 3ª Conferência reafirmou os eixos nove e dez do II Plano Nacional de Políticas Públicas para as Mulheres, sinalizando – de forma explícita – que as autonomias econômica, cultural, pessoal e política das mulheres só se concretizarão em uma sociedade livre do racismo, do sexismo e da lesbofobia. Uma sociedade que seja capaz de superar os preconceitos geracionais que atingem as mulheres jovens e idosas. Um Brasil em que o Estado seja efetivamente laico e, ao mesmo tempo, capaz de respeitar as distintas expressões de religiosidade.
A bandeira da diversidade marcou fortemente os debates da conferência. A desigualdade racial que ainda impera em nosso país nos tensiona, provoca e revolta. Queremos construir um Brasil capaz de conviver e respeitar os muitos “Brasis” que se manifestam neste imenso território, garantindo igualdade de oportunidades a todas as mulheres respeitadas suas diferenças.
Balanço positivo
O objetivo deste breve balanço não é traduzir uma avaliação ufanista da conferência, ignorando eventuais problemas ou falhas durante o processo. Mas sim, de pesar nos dois pratos da balança, os problemas de um lado e os avanços de outro, e avaliar a partir do prato que, sem dúvida, pesou mais.
Temos o dever de não ignorar os problemas, que, inclusive, acabaram ganhando destaque na grande mídia, que se dedica mais ao simulacro do que aos fatos e aos conteúdos. Como exemplo, podemos citar a quebra de contrato da empresa responsável pela organização da conferência, faltando praticamente uma semana para o seu início, que teve como consequência problemas na infraestrutura de hospedagem, frustrando expectativas de algumas delegações, que ficaram alocadas mais distantes do Centro de Eventos Ulisses Guimarães.
Do ponto de vista da Democracia Participativa, a conferência foi o ponto culminante de um processo que envolveu mais de 200 mil mulheres brasileiras, nas etapas estaduais e municipais, que resultou na elaboração de propostas para Planos Municipais e Estaduais de Políticas Públicas para as Mulheres. Mas, ao mesmo tempo, seu formato apresenta os limites e as contradições comuns a todo processo de institucionalização. Reconhecer os limites desse modelo de conferência é o primeiro passo para avançar na qualificação do processo, buscando uma democratização cada vez maior do debate, para que este seja cada vez mais participativo e inclusivo.
Por fim, cabe destacar que as presenças em tempo integral da ministra Iriny Lopes e da equipe da SPM foram um ponto forte de garantia do diálogo transparente e democrático, numa demonstração de respeito à construção dos movimentos de mulheres. O conjunto das prioridades definidas pelas mulheres nesses dias de debate e construção coletiva será publicado, em breve, no site da Conferência (http://conferenciadasmulheres.com.br).
A partir de sua publicação começa uma nova etapa da conferência para o conjunto das 200 mil mulheres que teceram, a muitas mãos, estas propostas: a luta, a fiscalização e a pressão pela sua efetiva implementação, num país onde as demandas por políticas públicas são imensas frente a um orçamento público limitado. Os compromissos da presidenta Dilma e da Ministra Iriny Lopes são conhecidos, mas só se concretizarão com a força das mulheres brasileiras. A partir deste momento, somos todas presidentas.
Texto de Eliane Silveira, militante da Marcha Mundial das Mulheres no Rio Grande do Sul e secretária geral do PT-RS