Por Sheyla Saori*
Publicado originalmente no Brasil de Fato
O acampamento Levante pela Terra reúne centenas de indígenas de várias etnias em Brasília e foi recebido com violência durante a ocupação na FUNAI. Essa reação tornou ainda mais público como as medidas do governo Bolsonaro pretendem “passar a boiada”.
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“Passar a boiada” foi uma expressão pronunciada pelo atual ex-ministro do meio ambiente, Ricardo Salles. “Passar a boiada” foi colocado como uma oportunidade para aprovar medidas legislativas em um momento em que a população está voltada para as urgências da pandemia, como a fome, a falta de vacina e o desemprego.
Essa agenda intensificou as negociações entre grupos do ramo do agronegócio e da bancada ruralista para desapropriação de terras e possível exploração dos territórios por setores da mineração, energia e de empreendimentos de ocupação ilegal que envolvem os arrendamentos, loteamentos, construção de portos e bases militares.
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O Projeto de Lei 490 tem a tese do “marco temporal” como central para restringir direitos constitucionais dos povos indígenas.
O PL interpreta que a garantia de terras a essa população deve ser comprovada através de sua ocupação até a data da promulgação da Constituição de 1988.
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Ou seja, os processos de terras demarcadas ou em vias de demarcação posteriores a essa data deverão ser revistos ou desqualificados. Essa tese ameaça o direito à terra e também possibilita a abertura dos territórios aos interesses da União – promovendo, nesse caso, o usufruto por grandes grupos econômicos.
A poluição das águas, do solo, a exploração de pessoas, a violência, a destruição da vida simbólica e espiritual, a cooptação de lideranças indígenas e a presença militar têm sido ferramentas da ofensiva da ocupação colonial e de controle dos territórios pelos setores do agronegócio.
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Os discursos de desenvolvimento, a promessa de gerar oportunidades econômicas e a responsabilidade ambiental são contraditórios, pois levam os povos a perder sua autonomia.
Antes mesmo do PL 490 ser formulado, muitas mulheres e crianças indígenas perderam suas vidas em conflitos ilegais de uso da terra, envolvendo madeireiros, garimpeiros e grilagem. Se o PL for aprovado, esses conflitos se intensificarão, porque ganharão licença legal para explorar a natureza e as pessoas que dela sobrevivem.
Manifestação em Brasília contra PL 490, que retira direitos dos povos indígenas / Foto: Tiago Miotto/Cimi
Mulheres contra o capital
As mulheres têm marcado sua posição em relação aos projetos do capital: reagem coletivamente e respondem aos problemas de maneira criativa e com resistência. São muitas as experiências cotidianas que mostram como os seus modos de vida se tornam estratégias de resistência contra a força do capital.
A agricultura diversificada, a guarda de sementes, a preservação e troca de espécies, o uso de plantas para a saúde, a produção de alimentos relacionada com os princípios da natureza e os trabalhos coletivos na terra são conhecimentos transmitidos principalmente entre as mulheres.
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Muitos modos de vida estão ameaçados com a chegada de empreendimentos que transformam a realidade dos territórios, geralmente acompanhadas de um turismo de consumo, da prostituição e do tráfico de drogas. Esses projetos impõem um modelo conservador e neoliberal que precariza e controla a vida das pessoas.
Parte do texto do PL também flexibiliza o contato de povos isolados, atendendo a um pedido da bancada evangélica. Joênia Wapichana, primeira e única mulher indígena representante da Câmara dos Deputados, afirma que os povos indígenas merecem respeito e liberdade e não de um novo projeto de colonização.
Indígenas do Sul e Sudeste ocupam cúpula do Congresso Nacional contra PL 490 / Adi Spezia /Cimi
A mobilização dos povos indígenas têm nos mostrado que esse projeto genocida, ainda em trâmite no Congresso, se baseia em manter “reservas de terras” aos indígenas (como áreas de parques, por exemplo) como uma ação colonizadora que entende que os povos devem ser tutelados e sua organização social mantida sob juízo aos interesses da União.
Mulheres indígenas organizadas denunciam que o PL 490 limita seus modos de vida, não reconhece a diversidade da nação indígena e coloca os povos como seres primitivos. Negam os povos indígenas como sujeitos de direitos e sua possibilidade de transitar entre os territórios ou, por exemplo, sair para estudar uma faculdade.
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Esse modo de operar e controlar os territórios é fundamental para o modelo impositivo da colonização patriarcal. É uma agenda racista, xenofóbica e antifeminista que compactua com relações de poder e dominação dos corpos e territórios.
O PL 490 também expõe que o usufruto das terras pelos povos originários não deve se sobrepor aos interesses da política de defesa e soberania nacional, de modo que as instalações de bases militares e exploração energética podem ser implementados ali, sem depender de consulta prévia às comunidades indígenas.
Projeto de Lei 490 tem a tese do “marco temporal” como central para restringir direitos constitucionais dos povos indígenas / Mídia Ninja
Ainda que o direito de consulta livre, prévia e informada esteja garantido pela Convenção 169 da OIT, esse mecanismo ainda não tem assegurado a transparência nos processos realizados pelos projetos de exploração capitalista, existindo apenas como um protocolo “democrático” para se aprovar projetos empresariais compactuados com governos.
As mulheres indígenas, de comunidades tradicionais e rurais têm reivindicado seus territórios livres da exploração do capital. Na comunidade da Enseada da Baleia, em Cananéia/SP, as mulheres pescadoras construíram um protocolo de consulta que protege a comunidade e o território da imposição dos parques e de projetos turísticos.
As mulheres indígenas têm desenvolvido, historicamente, seus conhecimentos na agricultura e conciliado a produção de alimentos com as necessidades das pessoas em suas comunidades e aldeias.
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As mulheres estão atentas aos projetos e as diferentes maneiras que eles chegam nos territórios, os problemas ambientais e a imposição de outros modos de vida são percebidos e trazem conflitos na vida cotidiana.
A vida diversa e abundante nos territórios indica como a interdependência entre os seres vivos e a nossa dependência da natureza é parte dessa dinâmica.
As experiências das mulheres anunciam a necessidade de colocar a vida como o centro da organização política e econômica. O tempo da natureza não acompanha o tempo produtivista e a destruição dos bens comuns a favor do lucro.
Por isso, dizemos: #PL490NÃO! #LevanteIndígena! #TerraIndígenaFica!
*Sheyla Saori é agrônoma, integra a equipe da SOF Sempreviva Organização Feminista e é militante da Marcha Mundial das Mulheres.