Por Maria Fernanda Marcelino*
Publicado originalmente no Brasil de Fato
O controle patriarcal sobre a vida e os corpos das mulheres tem muitas expressões, e a violência permeia todas elas. Está no impedimento ao livre exercício da sexualidade e, portanto, na imposição da heterossexualidade como norma a ser seguida.
Está nos padrões de comportamento, na naturalização da exploração e da divisão sexual e racial do trabalho, na responsabilização das mulheres pelo trabalho doméstico e de cuidados, na imposição da maternidade como destino obrigatório, entre tantas outras que nos acompanham pela vida, chegando à criminalização do direito ao aborto, que é uma de suas faces mais cruéis.
Controlar a vida e o corpo das mulheres é uma violência
Na nossa atuação política cotidiana, desenvolvendo formações feministas auto-organizadas, acompanhamos como as mulheres trabalhadoras vivenciam a sexualidade desde muito meninas. Não há uma única roda de conversa onde situações de constrangimento, assédio, abusos e violências sexuais não apareçam. Situações que marcam a vida das mulheres e que vão organizar nosso comportamento por toda a vida.
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Os dados apenas elucidam o que vivenciamos na pele: os homens têm acesso livre aos nossos corpos, e isso só é interrompido quando nos fortalecemos para dizer não e para denunciar esse acesso. Quando casos horrendos se tornam públicos – como o da menina de dez anos grávida, violentada desde os seis – , não faltam opiniões para dizer que aquele homem é um doente, um psicopata.
Mas se quatro meninas de até 14 anos são, em média, estupradas por hora, e cerca de doze mulheres são assassinadas por dia no país, poderíamos então dizer que estamos vivendo num país composto por uma população de homens psicopatas?
70% das violências são cometidas por pessoas que a vítima conhece – namorados, familiares, colegas de escola ou de trabalho. A violência não é uma doença. É, isso sim, um problema social, uma engrenagem desse sistema patriarcal que (des)organiza e controla nossas vidas, e por isso deve ser enfrentada como tal pelo conjunto da sociedade, rumo a uma outra forma de viver que não tema o controle e a violência nem dos homens, nem do Estado, nem do capital.
Despatriarcalizar e laicizar o Estado
Negar o direito ao aborto é uma condenação ao silêncio, à vivência de uma sexualidade a serviço do poder masculino (e não do prazer), a uma vida medicalizada, às vezes dopada de medo e culpa.
Mas essa condenação cabe apenas às mulheres, pois nossa sociedade autoriza e estimula os homens a exercer sua sexualidade de forma irresponsável, e as mulheres, a garantir a prevenção ou a arcar solitariamente com a gravidez resultante do ato sexual desprotegido.
São inúmeras as gestações indesejadas que acontecem mesmo com o uso de anticoncepcionais, afinal, eles podem falhar, especialmente quando há interação medicamentosa que corta os efeitos ou diminuem sua eficácia, caso de antibióticos, por exemplo.
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As camisinhas podem ser mal colocadas, furam, saem antes da hora. O que falar das jovens mulheres que tomam pílulas do dia seguinte achando que estão se prevenindo? Condená-las a serem mães?
Com todo esse peso colocado exclusivamente sobre as costas das mulheres, pouco se problematiza os riscos e efeitos colaterais dos hormônios, por exemplo. O assunto da sexualidade das mulheres e consequentemente do aborto é muito interditado por moralismos, por um conservadorismo que dificulta o acesso à informação de qualidade e acompanhamento adequado pelo sistema de saúde e educacional.
O avanço da extrema-direita no poder congelou gastos em saúde e educação por 20 anos e impede, de forma recorrente, a educação sexual e o pensamento crítico nas escolas. Os poderes estão cheios de legisladores que atuam a partir de preceitos religiosos – vide a recente isenção de impostos de templos –, e não com vistas ao bem comum e o atendimento das demandas do conjunto da sociedade.
As mulheres encontram em outras mulheres a solidariedade para acessar um procedimento abortivo, o afeto, o cuidado, a companhia
Temos acompanhado uma avalanche de projetos de lei que tentam restringir ainda mais o aborto, até mesmo aquele já previsto por lei – nos casos de estupro, anencefalia e risco de vida da mãe. Criminalizar este ato é colocar em risco, sobretudo, a vida das mulheres pobres, cujo acesso ao aborto clandestino acontece de forma mais precária e arriscada.
Mas a interrupção da gravidez, provocada ou espontânea, é e sempre foi parte da vida reprodutiva das mulheres, com chás, métodos caseiros… O que mudou ao longo tempo foi a forma como essa questão é tratada: como assunto de política, juízes, pastores e padres.
Enquanto o aborto for criminalizado, não podemos dizer que vivemos num Estado democrático de direito, regido pela laicidade, com respeito à pluralidade de concepções, formas de vida, com autonomia para decidir, sem julgamentos morais e perseguição.
A proibição do aborto não tem nada a ver com a defesa da vida
Nas já mencionadas rodas de conversa realizadas em nossas formações feministas, estabelecemos um pacto de confiança: todas podemos falar sem o medo do julgamento. Muitas dizem que, se tivessem tido chance de escolher, teriam escolhido não ser mães, mesmo amando os filhos que têm.
Dizem também que, se tivessem podido discutir sobre a sexualidade, teriam descoberto que a lesbianidade não é uma doença, nem um pecado. Esses relatos são duros, mas também são relatos de transformação das vidas de cada uma, e é bom ouvir a alegria da vivência da sexualidade sem culpa, com prazer.
A decisão sobre ser ou não ser mãe é muito séria, pois altera muitos aspectos da vida de cada mulher, especialmente numa sociedade desigual como a nossa. Portanto, jamais pode ser fruto do acaso, de uma falha contraceptiva, menos ainda de uma violência física ou psicológica que retira as forças de uma mulher para que seu desejo seja respeitado.
O movimento feminista se organiza para que o aborto seja entendido como um direito, descriminalizado e legalizado em todo o mundo
Os representantes antidireitos dizem defender a vida, mas, na realidade, desprezam a vida das mulheres que carregam um óvulo fecundado, relegando-as a ser um mero receptáculo, sem a liberdade de dizer sim ou não.
Desprezam seus planos de vida, expectativas, condições, muitas vezes as condenam a vínculos não desejados com os homens responsáveis pela fecundação e ao longo e trabalhoso cuidado de uma criança.
O aborto ainda figura entre as cinco primeiras causas de morte materna no Brasil. Certamente, este triste número se reduziria caso o aborto fosse legal, seguro, gratuito, garantido pelo Sistema Único de Saúde (SUS) para todas as mulheres. A proibição do aborto não impede a sua prática, apenas condena as mais pobres a procedimentos inseguros, solitários ou a filhos indesejados.
Nós, do movimento feminista, defendemos a vida das mulheres e seu direito à autonomia. Defendemos a vida daquelas que optam por um aborto porque já têm filhos e sabem que não tem condições de sustentar outros, das que são abandonadas por homens que sempre levantam dúvidas sobre a paternidade mesmo não se prevenindo, das que não tiveram acesso digno à saúde reprodutiva, defendemos a vida e a autonomia de qualquer mulher que, por qualquer motivo, não queira ser mãe.
O aborto não precisa ser um sofrimento
O procedimento de abortamento cirúrgico, se feito em condições corretas, é rápido, sem dor e seguro para a saúde da mulher. Há também os protocolos internacionais que podem ser realizados em casa com o uso do misoprostol. Nesse caso, a mulher terá que lidar com os efeitos colaterais da medicação, que passam em algumas horas, sendo também um método seguro e eficiente se usado corretamente, de acordo com a Organização Mundial de Saúde (OMS).
Quando as mulheres não desejam a maternidade naquele momento, tudo o que querem é resolver o problema, e a angústia só aumenta com o passar dos dias. As mulheres encontram em outras mulheres a solidariedade para acessar um procedimento abortivo, o afeto, o cuidado, a companhia.
Poder ser ouvida sem julgamentos e acompanhada com as informações seguras é o que transforma a angústia em alívio. E permite que as mulheres possam seguir seus planos com o respeito e autonomia. Um método contraceptivo falho não pode ser o único motivo para que uma mulher seja mãe.
Por isso, o movimento feminista se organiza para que o aborto seja entendido como um direito, descriminalizado e legalizado em todo o mundo. Não descansaremos enquanto esse direito for negado a uma única mulher em qualquer parte do globo.
*Maria Fernanda Marcelino faz parte da equipe da SOF Sempreviva Organização Feminista e é militante da Marcha Mundial das Mulheres.