Por Sonia Coelho* originalmente no Brasil de Fato
Os períodos eleitorais deveriam ser o momento perfeito para debater o projeto de sociedade que queremos e a realidade vivida pela população para buscar soluções, rever ações que não deram certo ou reforçar aquilo que foi bom para a população. Porém, a desinformação faz com que a disputa de projetos se perca em meio a falsas polêmicas.
Agora, com a candidatura do presidente Jair Bolsonaro, aprofunda-se a possibilidade da mentira sem o menor constrangimento e ética. A mídia tradicional corrobora com esse processo, organizando encontros com candidatos em formatos que reforçam a despolitização e escamoteiam a realidade. A imprensa tenta o tempo todo apontar a esquerda como “o mal” ou “o perigo” para um governo, que incita o ódio contra a esquerda e tenta desqualificar os governos de esquerda. A rede Globo, por exemplo, tem mais interesse em atacar o governo Dilma de seis anos atrás, do que o atual governo Bolsonaro, que praticou genocídio durante a pandemia de covid-19, desmontou o Estado de direito e atacou a democracia frequentemente, sem falar nas milhões de pessoas empurradas para a miséria e a fome.
Já no Congresso, a Câmara e Senado brasileiro não recebem nenhuma cobrança da sociedade. Mais de cem propostas de impeachment de Jair Bolsonaro, foram apresentadas no congresso e engavetadas. Todas apontaram os graves crimes que o presidente cometeu. Temos um congresso subserviente, comprado e bem pago por Bolsonaro com um orçamento corrupto chamado pela imprensa de “secreto”. Enquanto isso, o Sistema Único de Saúde (SUS) e o Sistema Único de Assistência (SUAS) desmoronam, sem recursos para atender uma população adoecida e na miséria. Ao mesmo tempo, deputados administram milhões do recurso público para fazer clientelismo, e sobre isso não houve nem uma palavra da mídia tradicional. Com isso, infelizmente está colocada a possibilidade de esses mesmos deputados mercenários e lacaios se elegerem para a próxima legislatura. Os mesmos deputados que afundaram o Brasil junto com Bolsonaro.
Bolsonaro nunca escondeu que odeia mulheres. Mas a estratégia de sua campanha propaga mentiras para tentar reverter os votos das mulheres. Afirmam que Bolsonaro fez políticas para as mulheres e usam a imagem de Michele Bolsonaro para tentar evitar o possível crescimento de votos de mulheres (principalmente mulheres evangélicas) para o candidato Lula.
A campanha se apega ao velho discurso dos valores morais de “bem contra o mal”, valores que reforçam a família patriarcal tradicional, cristã, com pai, mãe e filhos, e que pelos estudos do IBGE representa 49,9% das famílias. Os 50,1% restantes representam outros tipos de configurações familiares, inclusive famílias homoafetivas.
O discurso conservador de Bolsonaro em defesa da família não se sustenta na realidade prática do que foi construído em termos de políticas públicas durante seu desgoverno, a começar pela pandemia.
Não podemos esquecer a morte de mais de 670 mil pessoas, a maioria mortes evitáveis, fruto de omissão e, mais do que isso, de uma estratégia organizada para manter a transmissão do vírus. Em uma equação que soma corrupção e negacionismo, Bolsonaro impediu a rápida aquisição de vacinas e medicamentos eficientes. Quantas famílias foram destruídas pela morte de responsáveis, mães, pais, avós, tias, resultando em milhares de crianças órfãs. Ainda durante a pandemia, o governo ficou quatro anos batalhando para acabar com o direito ao aborto em casos previstos na lei, porque prega a maternidade compulsória. Não se importou, porém, que o Brasil fosse nesse período o campeão da mortalidade materna (morte da mulher durante a gestação e no pós parto). Segundo o Observatório Obstétrico do Brasil, entre 2020 e 2021, 1921 mulheres gestantes e puérperas morreram por falta de tratamento adequado, falta de vacinas, falta de respiradores de UTI, sem contar a mortalidade neonatal que também cresceu.
Essa falsa defesa da vida e da maternidade por Bolsonaro cai por terra quando olhamos as condições concretas da vida que as mulheres e famílias têm para o exercício da maternidade e da sustentabilidade da vida. Uma das politicas mais cruciais para as mulheres exercerem a maternidade mantendo a autonomia econômica é a política de educação: ensino infantil básico integral e creches.
O governo Bolsonaro atuou durante os quatro anos para o desfinanciamento da área da educação. O estudo do INESC sobre o balanço geral do orçamento da União, demonstra a diminuição dos recursos em todas as áreas sociais, acentuando as desigualdades sociais e raciais e a precarização da vida das crianças e das mulheres, sobretudo das mulheres negras. Segundo um levantamento da Folha de São Paulo, 434 milhões de reais previstos nos orçamentos que deveriam ser liberados para funcionamento e concretização de obras de creches no país não foram liberados.
Todos os estudos sobre desemprego apontam as mulheres e negras como a maioria desempregada. A falta de vagas em creches obriga muitas mulheres a deixarem seus trabalhos remunerados para cuidar das crianças, Muitas vezes, também, esse trabalho de cuidado recai sobre as meninas, especialmente as negras, dificultando a manutenção dos estudos e impedindo o tempo para lazer. O aumento do trabalho infantil doméstico fica naturalizado e invisível nas costas das meninas.
Outra enganação foi o chamado Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos, um ministério que apenas serviu para propaganda ideológica da família cis, branca, heteronormativa e cristã, sem nenhuma politica pública para alterar as condições reais de vida das mulheres e das famílias. Pelo contrário: o Ministério foi o espaço para ataques contra o movimento feminista e a autonomia das mulheres. Um estudo da Gênero e Número demonstrou que 70% das reuniões da responsável por este ministério foram com homens.
Os movimentos feministas denunciaram a não execução dos recursos, que foram diminuindo a cada ano, como mostra o estudo do INESC. No pior cenário da pandemia, em 2020, quando também a violência contra a mulher disparou em todo o país, 70% do orçamento desse ministério que é responsável por medidas de prevenção e enfrentamento a violência não foi usado. Sobraram recursos e desamparo para mulheres e crianças. Outro elemento que nos deixa estarrecidas é a defesa intransigente do nascituro, ou seja, o não nascido. Durante esses quase quatro anos, o movimento de mulheres denunciou a frequente manobra do governo e de setores conservadores e de extrema direita de tentar impor projetos que colocam a questão da defesa da vida desde a concepção, impedindo o direito ao aborto em qualquer circunstância. Também denunciamos a tentativa de criar e requentar projetos de lei como o “bolsa estupro” para garantir direitos e estatuto para embriões e fetos. Fica a pergunta: por que crianças e adolescentes não têm esta defesa intransigente por parte do governo?
Pelo contrário, estudos orçamentários como o do INESC também demonstraram que o governo, desde 2019, vem diminuindo recursos para proteção e educação da criança e adolescente. Em 2021, o Fórum Brasileiro de Segurança Pública divulgou um estudo sobre a “violência letal e sexual contra crianças e adolescentes no Brasil”, segundo o qual 35 mil crianças e adolescentes foram mortas, a maioria negras. 17 mil crianças de 0 a 4 anos foram violentadas, a maioria meninas. A vida dessas crianças e adolescente não importa?
Por qual motivo a maternidade é tão exaltada, mas quando a criança nasce as mães não possuem as condições concretas para o exercício da maternidade? E as crianças e adolescentes que têm gravidez decorrente de estupro e são impedidas de exercer o direito ao aborto legal? Setores reacionários do judiciário atuam em conluio com o governo federal para impedir que esse direito seja exercido pelas meninas. O movimento feminista tem denunciado a imposição da maternidade às crianças, e reafirma: “criança não é mãe”!
Tais fatos precisam vir à tona neste momento de disputa eleitoral para denunciarmos esse projeto neoliberal, conservador, racista e misógino que está em curso. Do jeito que as coisas andam, a cada dia se aprofunda mais o que temos apontado como conflito entre o capital e a vida, que destrói as bases necessárias para a existência humana e a natureza.
A ausência do Estado na promoção de direitos e políticas públicas coloca todo o ônus da manutenção da vida sobre as costas das mulheres, que têm que dar conta da responsabilidade de todo o trabalho doméstico e de cuidados. É cada vez mais necessário discutirmos, enquanto sociedade, a desfamiliarização e a desprivatização do trabalho de cuidados, na luta por um Estado de direito, com democracia popular e feminista, reconhecendo o trabalho das mulheres como fundamental para a sustentabilidade da vida.
*Sonia Coelho é assistente social, integrante da equipe da SOF Sempreviva Organização Feminista e militante da Marcha Mundial das Mulheres
**Este texto foi escrito com a contribuição de Luiza Mançano, comunicadora, tradutora e militante da Marcha Mundial das Mulheres.
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****Este é um artigo de opinião. A visão da autora não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Glauco Faria