Por Natália Lobo, publicado na Coluna Sempreviva do Brasil de Fato e também no portal Capire em português, espanhol, inglês e francês.

“Apenas conecte”. Essa frase resume a aposta política do ecofeminismo, segundo Ariel Salleh no  prefácio ao livro Ecofeminismos, de Maria Mies e Vandana Shiva. O texto a seguir presta homenagem à memória de Maria Mies, que faleceu no último dia 16 de maio e que por tantos anos foi uma inspiração, como intelectual e militante, para tantas de nós, feministas populares inseridas nas lutas ecológicas. 

Maria Mies foi uma socióloga alemã que contribuiu muito para o feminismo e especialmente para o ecofeminismo com suas elaborações sobre desenvolvimento, dinâmica de acumulação, globalização e crise ecológica. Se debruçou especialmente sobre a opressão patriarcal e colonial sobre as mulheres do Sul Global, e foi importante interlocutora de pensadoras como Vandana Shiva e Silvia Federici.  Para Salleh, “feministas ecológicas são lutadoras de rua e filósofas, ao mesmo tempo”. Mies era uma dessas, como tantas de nós.  

“Apenas conecte. Nenhuma outra perspectiva política – liberalismo, socialismo, feminismo, ambientalismo – pode integrar o que o ecofeminismo faz: porque os povos romani ainda são tratados como animais; porque as mulheres fazem 65% do trabalho mundial e recebem 10% dos salários; porque imagens de abuso sexual infantil na internet geram milhões de dólares; porque galinhas são criadas apenas para o consumo de fígados e asas; ou porque a própria Terra é manipulada como uma arma de guerra. A perda de espécies é endêmica, estamos na iminência do esgotamento da água, os solos estão perdendo integridade orgânica, a atmosfera é devastada por tempestades furiosas.”  

Ariel Salleh 

“Apenas conecte” é uma aposta política que Maria Mies levou às últimas consequências. Fazendo isso, ela nos revelou as conexões profundas entre o patriarcado, o capitalismo e o colonialismo, construindo uma teoria radical à serviço da libertação das mulheres e dos povos. 

Em consonância com outras feministas ecológicas, ela nos lembra em seu livro Patriarcado e acumulação primitiva em escala mundial – recém traduzido para o português pelo coletivo Sycorax e publicado pela Ema Livros – que o paradigma do crescimento e progresso infinito é um mito patriarcal. É um paradigma que não pode se concretizar na realidade, tanto porque vivemos em um mundo materialmente finito, quanto porque o progresso de certas sociedades, no capitalismo, está condicionado à exploração de outras.  

Nesse sentido, Mies também questiona o que chamaríamos hoje de “tecnosolucionismo”, problematizando a ideia de que, em uma sociedade socialista, a ampliação do tempo livre das trabalhadoras e trabalhadores seria garantida pelo desenvolvimento tecnológico. Para isso, seu argumento central é o fato de que o desenvolvimento da tecnologia tem dependido historicamente da exploração dos territórios e dos povos do Sul Global, através dos megaempreendimentos energéticos e de mineração, por exemplo.  

Na sua perspectiva, a ampliação do tempo livre das mulheres é um tema importante, que precisa ser pensado em conjunto com a transformação da divisão sexual do trabalho. Essas duas transformações, para ela, não seriam garantidas pela tecnologia, e sim pelo estabelecimento de uma posição política de valorização dos trabalhos que reproduzem a vida, e contra a divisão entre lazer e trabalho socialmente necessário. Isso é especialmente importante para a liberação de tempo e trabalho das mulheres, porque a maior parte do trabalho feminismo não é trabalho alienado: são trabalhos produtores de vida e de valor de uso, como o cuidado e a agricultura para autoconsumo. Assim, a questão não é diminuir ao máximo a existência desses trabalhos, substituindo-os pela tecnologia, mas sim valorizá-los, colocá-los no centro da economia, e construir relações de trabalho que estejam entremeadas pelo descanso e pelo prazer.  

Marias Mies também abriu caminhos com suas elaborações sobre a divisão entre trabalho produtivo e reprodutivo. Ela recusava a forma como essa divisão normalmente é entendida, na qual os trabalhos que geram mais valia – e, geralmente, exploração da natureza aliada à exploração do trabalho – são colocados como produtivos, e os trabalhos que geram a reprodução da vida como “reprodutivos”. De forma provocativa, Mies nos sugeriu que os trabalhos produtivos são aqueles que geram vida e valor de uso, que são importantes para a maioria das pessoas, como a educação, o cuidado e a alimentação; e os trabalhos que só geram mais-valia e destruição, como as indústrias da morte (armas, agrotóxicos, exploração mineral sem limites) seriam trabalhos “destrutivos”, que deveriam deixar de existir. 

Para isso se concretizar, Maria Mies nos lembrava que os países do Sul Global precisavam necessariamente construir sua soberania com economias mais autossuficientes.  Questionando a divisão internacional do trabalho, propunha um modelo mais descentralizado de produção e consumo, o que diminuiria a alienação em relação ao trabalho, além de ter um impacto ecológico positivo.  

Foi assim, tecendo críticas duras e elaboradas e desenhando propostas para um horizonte de emancipação, que Maria Mies alimentou nossa imaginação feminista. Essa imaginação é cada vez mais necessária para que não adotemos uma postura cínica e derrotista frente à quantidade de crises conectadas que enfrentamos. “Apenas conecte” é um imperativo para acharmos formas de destruir os sistemas de dominação, todos de uma só vez.  

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Natália Lobo é agroecóloga, militante da Marcha Mundial das Mulheres e integrante da equipe da SOF Sempreviva Organização Feminista. 

Revisão por Helena Zelic