Por Tica Moreno, originalmente publicado no Brasil de Fato*
A partir das casas, dos bairros e do campo, a realidade das mulheres no Brasil e nos países latino-americanos é muito parecida: estamos sentindo todos os dias os efeitos da crise – aprofundada pela pandemia – nas condições de vida. E sabemos que a situação tende a ficar mais grave. Mas esse ponto de vista feminista – a compreensão da economia a partir das condições de vida – tem passado longe das narrativas e notícias relacionadas com os programas de recuperação ou reativação econômica mundo afora.
Se nos primeiros meses da pandemia se evidenciou como se aprofundaram as desigualdades e, especificamente, a sobrecarga de trabalho doméstico e de cuidado assumida pelas mulheres, agora essa é uma questão que volta a ser insistentemente invisibilizada nos debates econômicos. Isso significa que as mulheres estão assumindo, uma vez mais, com seu tempo, trabalho e saúde, o ajuste para que a sociedade/economia continue funcionando, em plena crise pandêmica.
As mulheres assumem o cuidado da vida nas casas e nas vizinhanças, articulando a solidariedade nas comunidades diante da ausência e falta de responsabilidade do Estado com a vida. Ou melhor dizendo, no caso brasileiro, com o Estado sendo responsável por tantas mortes – de Covid, pela violência racista e machista, por mais armas em circulação. Neste país, cuidar da vida significa também gerir o luto, como Sarah de Roure nos lembrou em uma plenária recente da Marcha Mundial das Mulheres.
A normalização e banalização das mortes faz parte do ritmo de acumulação do capital.
Estes são assuntos que desaparecem dos planos de recuperação da economia, junto com os argumentos que tentam separar a economia da política, muito úteis inclusive para a elite e o mercado que pressionam para que o governo Bolsonaro aprove mais medidas neoliberais e a favor do capital financeiro (vide a autonomia do Banco Central).
No Brasil e no mundo, cada vez é mais complexo debater e questionar o consenso do mercado (o poder corporativo): o negacionismo e a desinformação estão na ofensiva, o debate democrático é negado, e a política é privatizada. Os mesmos empresários/bilionários de sempre, as corporações transnacionais e os políticos da direita neoliberal são questionados por uma extrema-direita que critica “globalismos”, enquanto tentam se construir como alternativas políticas – com respaldo e papel ativo da mídia corporativa/hegemônica. São apresentados como menos escancaradamente fascistas ou representantes do “capitalismo diverso”.
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As estratégias de “recuperação” econômica desenhadas e defendidas pelo poder corporativo indicam a aceleração da dinâmica de captura corporativa, ao mesmo tempo que apontam os caminhos por onde este poder está avançando. Seja no âmbito do Fórum Econômico Mundial (Great Reset) ou da União Europeia (Next Generation UE), o poder corporativo se reposiciona e se reapresenta como quem é capaz de liderar o caminho para a transição ecológica e digital que o capitalismo, segundo eles, necessita. O fluxo de recursos públicos para o setor privado é intensificado, se consolida o mercado como referência para a organização da vida, e a tecnologia (das grandes empresas) como solução.
Por trás dessa fórmula, se aprofundam os mecanismos de acumulação do capital e vemos os malabarismos para desconectar “a economia” das bases que sustentam a vida. Neste caso específico, é notável como as soluções tecnológicas variam desde invenções de geoengenharia para expandir o controle e a manipulação do planeta pelo capital, a artificialização da vida e da natureza, o digital até as energias renováveis, todas elas ocultando a extrema dependência do extrativismo, do trabalho e da expansão violenta das fronteiras do capital sobre os territórios.
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Essas falsas soluções ocultam a ecodependência e a interdependência, assim como negam, ocultam e atacam conhecimentos e tecnologias outras que, historicamente, tem sido responsáveis por garantir a biodiversidade e a vida. Isso fica mais do que evidente no próprio nome da nova estratégia de marketing do Fórum Econômico Mundial – “o grande reinício” – com uma narrativa e iniciativas que desconectam a vida humana (e a economia) da natureza, base da existência, negam a memória e apagam a responsabilidade que esse mesmo poder corporativo tem na produção desta crise.
Jeff Bezos (da Amazon) ganhou bilhões na pandemia às custas de um ritmo de exploração do trabalho e de suas políticas anti-sindical. Bill Gates (da Microsoft) fala tranquilamente em construir as condições para “administrar bem a próxima pandemia”. A noção de transição, adjetivada por “verde” ou “digital”, que eles mobilizam é totalmente divergente da que, a partir dos movimentos sociais, temos colocado em termos de transição justa.
Nossa transição é para um mundo sem capitalismo racista e patriarcal, em que a sustentabilidade da vida esteja no centro da sociedade. E, se esse é o horizonte, precisamos ir além dos limites que o pensamento hegemônico e a conjuntura política insistem em tornar cada dia mais restritos.
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Nossas lutas para desmercantilizar a vida hoje tornam ainda mais urgente o enfrentamento ao autoritarismo do mercado, especialmente quando ele se apresenta com as armadilhas do capitalismo diverso. Precisamos expandir as fronteiras do possível. Se o que se quer é evitar o colapso climático, precisamos atacar as causas do problema que estão no modelo de (re)produção e consumo.
Se é saúde que queremos promover, é preciso banir os agrotóxicos e transgênicos, e apostar na agroecologia para a soberania alimentar. Se a vida só é possível quando é cuidada, o tempo para o cuidado não pode estar subordinado ao tempo para a “produção”, muito menos ajustado às custas do trabalho e da saúde das mulheres. Economia e política estão totalmente articuladas em nossa agenda feminista para colocar a sustentabilidade da vida no centro da política. Por isso, em todo o país, as mulheres organizadas nos movimentos sociais estão se articulando para, no dia internacional de luta das mulheres (8 de março), defender a vida: fortalecer a luta pelo impeachment de Bolsonaro, pelo auxílio emergencial e para que a vacina seja um direito de todos e todas.
*Tica Moreno é socióloga, militante da Marcha Mundial das Mulheres e integra a equipe da SOF Sempreviva Organização Feminista.