Por Natália Lobo*
Originalmente publicado no Brasil de Fato
Aqui na coluna Sempreviva já fizemos reflexões sobre o tempo das mulheres, porque consideramos que uma das maiores expressões do patriarcado nas nossas vidas é a exploração não só sobre o corpo e o trabalho, mas também sobre o tempo de vida delas, utilizado como variável de ajuste da exploração capitalista.
Tempo também nos remete a memória, outro tema que é muito caro às mulheres, principalmente dentre as rurais, de comunidades tradicionais e negras, que têm, na sua ancestralidade, uma fonte importante de inspiração para a luta. Em meio a crise, elas se remetem ao tempo passado para conseguir imaginar o futuro.
A pandemia da covid-19 tem afetado a vida de todo o mundo de diversas maneiras desde o início de 2020, mas acomete as pessoas de formas diferentes.
Entre homens e mulheres, urbano e rural, brancos e negros, há diferenças na forma que a pandemia se dá e nas respostas que as pessoas, movimentos e comunidades dão à ela.
A nova publicação da SOF “Um meio tempo preparando outro tempo” narra em detalhes como as mulheres agricultoras agroecológicas passaram por este momento e encontraram respostas próprias para ele.
O livro foi construído a partir de experiências de redes agroecológicas protagonizadas por mulheres no sudeste brasileiro: em São Paulo, com a Rede Agroecológica de Mulheres Agricultoras da Barra do Turvo (RAMA); em Minas Gerais, com diferentes agricultoras agroecológicas da região da Zona da Mata; e no Rio de Janeiro, com as mulheres da Articulação de Agroecologia do Rio de Janeiro (AARJ).
Elas foram convidadas a compartilhar como a pandemia atingia suas comunidades e como estava a vida neste período, com todas as dificuldades da sobrecarga de trabalho de cuidados, os medos trazidos pela crise sanitária e as dificuldades econômicas.
Também contaram sobre as ações que seus grupos e redes estavam desenhando no período, principalmente na aliança campo-cidade, com a comercialização solidária e as campanhas de solidariedade.
O fato da publicação ter saído próximo ao lançamento do “Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil“, realizado pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede PENSSAN), nos dá ainda mais elementos para pensar a questão da fome e da soberania alimentar neste período.
A pesquisa, realizada nos últimos três meses de 2020, quando o auxílio emergencial ainda estava vigente, mostra que mais da metade da população brasileira está em insegurança alimentar durante a pandemia, com cerca de 9% das pessoas enfrentando a sua forma mais grave: a fome.
No meio rural, este número salta para 12%. Tudo nos leva a crer que, atualmente, a situação está ainda pior, devido ao fim do auxílio emergencial – o programa foi suspenso completamente durante o início de 2021 e agora retorna timidamente, abrangendo um público muito menor e com um valor muito abaixo ao praticado anteriormente.
As experiências das mulheres na agroecologia relatadas na publicação da SOF mostram como a construção da agroecologia, da valorização da agricultura para o autoconsumo, do descentramento do mercado na economia e da construção de circuitos solidários de comercialização são importantes para a segurança e a soberania alimentar.
Durante a pandemia, inclusive em decorrência do isolamento social, as mulheres fortaleceram muito a agricultura para o autoconsumo que sustenta suas famílias e comunidades, além de retomarem práticas que por vezes são esquecidas, como o preparo rotineiro de chás e banhos para curar o corpo.
A pesquisa da Rede PSSAN relaciona o aumento de insegurança alimentar grave no meio rural com a redução dos preços de comercialização da produção, efeito da crise econômica.
Isto nos chama ainda mais atenção para a importância das alternativas de comercialização que não se submetem à lógica do mercado e da produção para o autoconsumo, que representa uma importante fonte de renda não monetária nas famílias, mas permanece como uma contribuição econômica invisível. Que este seja um tipo de trabalho feito principalmente pelas mulheres é um fator essencial para esta não visibilidade.
A auto-organização das mulheres rurais junto à redes, movimentos e coletivos também se mostrou fundamental para o combate à fome na cidade. Através de redes militantes, elas construíram experiências de entregas de alimentos, artesanatos e produtos fitoterápicos para a cidade, muitas vezes ligadas à campanhas de solidariedade, possibilitando que o alimento agroecológico chegasse àqueles que estavam mais vulneráveis durante a crise.
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Pela atuação nas associações, redes e cooperativas, e tecendo alianças políticas com universidade e organizações, elas conquistaram projetos de vendas institucionais que também garantiram alimento agroecológico e de qualidade para beneficiários do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE).
Em um contexto em que oito em cada dez famílias moradoras das periferias urbanas não teriam condições de se alimentar, comprar produtos de higiene e limpeza ou pagar as contas básicas caso não tivessem recebido doações, é inegável a importância que estas as campanhas de solidariedade assumiram no período.
Apesar de terem uma importância inquestionável, a construção de todas estas alternativas se dá através de muito trabalho invisível e desvalorizado realizado por estas mulheres.
Enquanto cuidam da natureza através do trabalho na agroecologia, também são as únicas responsáveis pelo trabalho de cuidado de seus familiares e pessoas das comunidades. Parte importante da luta delas – e talvez o objetivo mais importante da publicação – é trazer todo este trabalho para a visibilidade e mostrar a potência política que reside nele, para então colocá-lo no centro da economia.
A experiência das mulheres da Articulação de Agroecologia do Rio de Janeiro (AARJ), relatada na publicação, demonstra a centralidade da dimensão da memória no fazer agroecológico.
Toda a ação, desde o plantio da horta, passando por cozinhar a comida da família usando plantas espontâneas reconhecidas nos quintais pelos olhos atentos das mulheres até o feitio dos xaropes, chás e banhos de cura e fortalecimento do corpo, são realizados evocando a sabedoria dos antepassados.
Há uma preocupação dentre elas de que isso se mantenha. Que as ações do grupo sejam no sentido de reforçar esta ancestralidade que marca não só a memória de cada um, mas também a história daquele território.
Quando perguntadas sobre como imaginavam a vida após a pandemia, elas responderam: “que possamos voltar a ser o que éramos antes, com um outro olhar (…) que as pessoas possam olhar pra esse futuro olhando pro passado”.
O passado aqui tem um sentido de colocar novamente no centro aquilo que realmente sustenta a vida: a natureza e a interdependência entre as pessoas. Partindo deste princípio do tempo antigo, aliando a ele suas novas práticas, as mulheres constroem sua ação cotidiana e apontam para o outro tempo.
*Natália Lobo é agroecóloga e parte da equipe da SOF Sempreviva Organização Feminista
Edição: Poliana Dallabrida