Texto produzido coletivamente por Alessanda Ceregatti, Lilian Roizman, Natália Blanco, Patricia Cornils e Renata Reis.
* O nome das personagens foi alterado.
Entre os dias 14, 15 e 16 de dezembro de 2021 aconteceu o intercâmbio das “Derivas Feministas” na Barra do Turvo, Vale do Ribeira. As Derivas Feministas – conhecimento dos territórios, ameaças e alternativas, visam ampliar a discussão sobre o impacto dos mega projetos na vida das mulheres e comunidades, no campo e na cidade. O intercâmbio foi realizado pela Sempreviva Organização Feminista – SOF e Marcha Mundial das Mulheres (MMM), é continuação das atividades que se iniciaram no Jardim Jaqueline em São Paulo e seguirá com atividades também no Rio Grande do Norte.
Cerca de 20 mulheres entre integrantes da SOF e militantes da MMM do estado de São Paulo participaram junto às agricultoras da Rede Agroecológica de Mulheres Agricultoras (RAMA) das atividades. Os eixos abordados foram: como os megaprojetos se instalam e impõem seu funcionamento nos territórios, quais resistências são organizadas pelas mulheres e como as mulheres sustentam a vida nesse contexto.
Dia 1 – Viveiro Comunitário Rio Vermelho
Para dar início ao intercâmbio, as mulheres visitaram o Viveiro Comunitário Rio Vermelho e partilharam em roda os desafios de construir a vida neste território cortado pela BR e pelo Parque Mosaico Jacupiranga. As políticas de mercantilização da natureza invadem os territórios e a vida das mulheres que se organizam para construir a resistência. Além das viajantes, estavam presentes agricultoras do próprio Rio Vermelho, bairro de Conchas, Bela Vista e de Barra do Turvo.
A comunidade do Rio Vermelho é uma das que sofrem pressões frequentes dos parques ecológicos e de propostas de desenvolvimento associadas ao Vale do Futuro, que promove a mineração, turismo extrativista e o fortalecimento de cadeias de produção de banana, palmito juçara e búfalos. As propostas são para supostamente melhorar a qualidade de vida das comunidades envolvidas, mas chegam recheadas de contradições e frequentemente são vistas com maus olhos pelas mulheres. São elas as primeiras a desconfiar e questionar as empresas, construindo saídas e mantendo viva a memória das inúmeras vezes que suas vidas e de suas famílias foram atingidas pelos interesses das mesmas.
Segundo as agricultoras, o viveiro é um espaço comunitário, usado desde 2012 para cultivo de mudas. O local é fruto de um reassentamento devido a criação do Parque Ecológico e hoje em dia é propriedade coletiva da Associação do Viveiro. Com o tempo, as mulheres foram abrangendo mais gente no cultivo e conectando mais pessoas a partir dos grupos de consumo.
Grande parte das mudas são destinadas à Arteris, empresa que gerencia a rodovia Régis Bittencourt, Iniciativa Verde, empresa de reflorestamento, e a Petrobrás. Uma das agricultoras contou que, junto a seu marido, abriram uma empresa pequena para a venda de mudas, juntos venderam mais de 15 mil mudas, a maioria de árvores frutíferas, e já conseguiram empregar 6 funcionários no negócio. Entre as estratégias para a reprodução das mudas estão a troca de sementes e mudas com outros viveiros.
As trajetórias das mulheres fazem parte dos conflitos territoriais e pelo acesso aos bens comuns. Ao narrarem sobre sua ancestralidade, elas apresentam a luta como continuação da história que é repleta de conflitos, resistências e aprontam perspectivas que se opõem à lógica autoritária do mercado e do Estado que prejudicam os modos de vida das comunidades. Os conflitos levantados indicam uma mesma lógica de tratamento autoritário das questões ecológicas, que tiram do povo sua autonomia: Comunidades que vivem dentro de áreas delimitadas enquanto parque; Comunidades e famílias que habitam áreas de proteção ambiental (APA); Conflitos relativos ao pagamento de serviços ambientais. A visita ao viveiro se estendeu para a roça de uma das agricultoras que apresentou também o local onde ela prepara a farinha de mandioca e as sementes das espécies plantadas.
Dia 2 – Quilombo Ribeirão Grande e Terra Seca: Mutirão e Rede de Comunicação Comunitária!
Na manhã do dia 15 de dezembro, mulheres de vários grupos da RAMA se juntaram ao grupo da SOF e MMM para um café da manhã no quilombo Ribeirão Grande e Terra Seca com direito a milho cozido na hora.
Depois do café, dois grupos se formaram para participar do Mutirão da RAMA, que é quando as agricultoras se unem para trabalhar coletivamente na roça de uma delas, por meio de um rodízio. Dessa maneira, o cuidado e o trabalho constante na terra se torna mais coletivo. Nesta oportunidade foi a vez de trabalhar nas hortas da Dona Clara* e da Dona Doris*. A força coletiva e a solidariedade das mulheres mostrando que com cada uma de nós, andamos melhor.
Além disso, um outro grupo foi conhecer a rede de comunicação comunitária instalada e mantida pela comunidade, um projeto coletivo da MariaLab, Rede Transfeminista de Cuidados Digitais, SOF e RAMA, financiado pelo projeto FIRN (APC). As participantes puderam acompanhar a manutenção de um dos pontos da rede mesh, implementada com a tecnologia livre FLOSS (Free/Libre Open Source Software) LibreMesh. Foi marcado o local onde será a instalação de um novo ponto de Wi-fi na próxima visita.
No período da tarde, após um delicioso almoço agroecológico e de um sorteio de produtos das mulheres da RAMA e também da AMESOL (Associação de Mulheres na Economia Solidária), foi a vez de sentar em roda novamente e conversar sobre os impactos da economia verde nos territórios.
Joana* compartilhou um pouco sobre o Encontro Nacional de Mulheres Quilombolas, que ocorreu em Ubatuba, contando com a presença de cerca de 80 mulheres. O quilombo de lá enfrenta um problema sério em relação aos parques, que invadiram o território. Antigamente, a área era de 1300 hectares, e agora, por conta das invasões, foi reduzida a 900 he. A expulsão dessas comunidades fazem parte de uma lógica racista e colonial que alimenta a acumulação privada de mercantilização dos bens comuns. As comunidades vivenciam o medo constante de terem suas casas destruídas e a privação de não fazer agrofloresta e/ou trabalhar na terra como desejam.
Essas práticas se assemelham com as intervenções oriundas dos projetos do Vale do Futuro, um guarda-chuva de iniciativas que buscam modernizar e capitalizar o Vale do Ribeira, que interferem na autonomia das agricultoras nos territórios.
As mudanças proporcionadas por esses projetos, como a construção e melhoria das estradas, não acompanham ações que priorizam as necessidades das comunidades, como a expansão das linhas de ônibus, por exemplo. Se não é para aumentar o transporte coletivo e/ou melhorar a circulação das populações em seu território, para quem é essa estrada? O Vale do Futuro também é interpretado como uma plataforma eleitoreira, uma vitrine para uma “alternativa verde”.
Uma das propostas que também não foi conversada com as comunidades é um programa de pagamento de serviços ambientais para preservação do palmito juçara. Eles oferecem um pagamento para quem quiser plantar, mas não só tem que ser tudo do jeito deles, como fazem as agricultoras abrirem mão de sua autonomia, privacidade, e uso dos ganhos do próprio trabalho. As mulheres enfatizaram que a preservação e o cultivo fazem parte dos interesses delas, no entanto, discordam dos objetivos reais das empresas que aparecem também no modo como elas propõem a “preservação”.
Ações como o processo autoritário de concessão do PETAR – Parque Estadual Turístico do Alto Ribeira, em Iporanga, também foi assunto da roda. A comunidade de 4 mil habitantes foi invisibilizada pelas documentações e excluída dos processos de consulta pública. As autoridades aproveitaram o momento da pandemia do COVID -19 para apressar o processo, sabendo que o acesso das comunidades à internet é limitado e isso impediria sua participação efetiva nas decisões. Diante desse cenário, a comunidade se organizou e após uma importante mobilização, conquistaram a interrupção do processo. A continuidade dessa luta barrou a consulta e propôs um novo prazo para reelaboração justa do processo com uma nova consulta pública e apresentação de estudos de impacto, audiência na comunidade. Essas iniciativas e esse controle partem de uma visão fragmentada do que é natureza. Não olham para o ecossistema da Mata Atlântica, que como um todo está ameaçado, olham apenas uma única planta, como se ela estivesse apartada de sua casa. Quando vemos o problema a partir de um olhar mais amplo, entendemos que o que ameaça o ecossistema (e dentro dele, a juçara) são os fazendeiros, as mineradoras, os agropecuaristas, em seus pastos para búfalos e monocultivo de banana. E faz parte desse projeto de mercantilização e financeirização da natureza a responsabilização das comunidades quilombolas pelos danos causados pelo capital. É mais conveniente para eles responsabilizar o quilombola que colhe o palmito artesanal do que as grandes pressões sobre o ecossistema.
Dia 3 – Conhecendo o Córrego da Onça e conversando sobre os cuidados e o trabalho doméstico.
O útlimo dia de intercâmbio feminista, dia 16 de dezembro, foi para conhecer o bairro do Córrego da Onça com as agricultoras do grupo Rosas do Vale da RAMA, e também conhecer a produção de alimentos realizada por elas.
A solidariedade entre as mulheres é ferramenta fundamental para a continuação da produção, pois os desafios vivenciados pelas agricultoras em dar conta do cultivo envolve também o trabalho doméstico e o trabalho de cuidados com seus familiares e suas casas.
É por isso que, além de participarem do Mutirão da RAMA uma vez por mês, semanalmente elas também organizam o próprio mutirão, o Mutirão das Rosas, um esforço coletivo em trabalhar nos roçados e produzir comida de verdade.. As Cadernetas Agroecológicas desenvolvidas pelo GT de Mulheres da Articulação Nacional da Agroecologia – ANA também são utilizadas pelas mulheres e contribuem para a construção da autonomia das agricultoras e para o reconhecimento do trabalho realizado por elas.
Autonomia e cuidados foram os temas da roda de conversa que fizemos em um dos quintais agroecológicos das mulheres. A pandemia do COVID-19 intensificou ainda mais o trabalho doméstico: o difícil acesso à internet e o acúmulo de funções de cuidado fez parte da realidade das agricultoras. Em relação à educação das crianças durante a pandemia, muitas preferiam dirigir-se presencialmente à escola a cada semana para pegar as atividades a serem realizadas com as crianças do que tentar seguir as aulas remotas pelos grupos de whatsapp no celular. Além de buscar as tarefas na escola, havia a dificuldade de acompanhar os estudos das crianças: “Não temos o mesmo nível de estudo e as lições de antigamente são diferentes das de hoje”.
Elas também compartilharam como organizam seu trabalho para dar conta da produção agrícola e das tarefas domésticas e de cuidados com a família e consigo mesmas. Além do trabalho na própria roça e nos mutirões, há também o trabalho que elas realizam no CEAFIM – Centro de Envolvimento Agroflorestal Filipe Moreira Feijão, milho, mandioca, inhame, pimentão, tomate, amendoim, banana, repolho, alface, almeirão e abóbora são alguns dos alimentos cultivados pelo grupo.
Com o trabalho de produzir alimentos sem veneno, elas relataram que conquistaram mais autonomia sobre suas vidas. Para elas viver de seu roçado e se organizar junto às outras agricultoras permite organizar seu tempo e decidir sobre o trabalho, sem relações de submissão do tipo patrão-empregada: “A gente trabalha pra gente e se sente melhor, sabia? Não tem opressão”.
Parte dos alimentos que as agricultoras cultivam é dedicada ao consumo próprio e a outra parte vai para a comercialização na rede que articula campo e cidade. Além do trabalho agrícola, feito em geral pela manhã bem cedinho, o artesanato, a costura e a preparação de salgados e doces para venda são outras atividades que as mulheres realizam, somadas às tarefas domésticas e de cuidado das pessoas.
E os homens nessa história? Como reduzir a sobrecarga de trabalho domésticos e de cuidados das mulheres? “Educação” foi uma das respostas citadas, não somente aquela dentro da família, ensinada por mães, pais, avós, mas aquela recebida nas escolas, lugar onde é possível ensinar e aprender que homens podem, sim, cuidar de tarefas domésticas como arrumar a casa, cuidar das crianças, lavar, passar e cozinhar.
Elas contaram que os maridos dão uma ajuda de vez em quando, nos serviços pesados principalmente, os filhos também, mas a maior parte da correria dos serviços de casa ainda está sobre as mulheres, mães, avós, irmãs, filhas. E, ainda por cima, é preciso cuidar da própria saúde, mas a solidariedade entre elas ajuda a enfrentar todas as pressões: “A gente trabalha, conversa com as companheiras e uma incentiva a outra”.
As mulheres relataram que a entrada na RAMA ajudou a organizar melhor as tarefas de produção e em casa e a compartilhar mais com os homens e filhos e filhas.
Neste sentido, militantes da MMM de São Paulo que trabalhavam como enfermeiras compartilharam sua experiência com o cuidado de idosos. Também nesse caso foi relatado que a organização das mulheres de maneira coletiva, negociando os termos do contrato, horário e tarefas a realizar e a não realizar no cuidado da pessoa idosa ou enferma é o que permitiu obter melhores condições de trabalho e remuneração. “É muito importante tirar um dia pelo menos para descansar e cuidar de si mesma. Na caminhada da vida, é necessário se voltar para nós mesmas em alguns momentos. O mutirão que vocês contaram ou, no meu caso, a participação na Marcha Mundial das Mulheres, me ajudou muito.”
A preocupação com direitos como licença saúde, licença maternidade e aposentadoria também foi um tema da conversa. As mulheres enfrentam dificuldades para serem reconhecidas como agricultoras. Entre os obstáculos, está a exigência do título da terra que, muitas vezes, está em nome do marido ou de outra pessoa que detém a propriedade da terra. As anotações na caderneta agroecológica e as planilhas de produção mensal se mostraram como documento fundamental para provar o trabalho realizado pelas mulheres agricultoras.
As políticas públicas de apoio à produção e ao escoamento da produção como o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) (reduzido a quase nada no atual desgoverno), o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) – e a Assistência Técnica e Extensão Rural (ATER), assim como as políticas de educação, saúde, direito à terra também foram assunto na conversa.
O fortalecimento das redes criadas pelas mulheres, as resistências e as ações para os próximos passos fez parte do intercâmbio. As partilhas, seja nas conversas, nas refeições e no trabalho nas roças continua reverberando entre as mulheres que participaram dessa experiência.