No final de março (29/03), a SOF e militantes da Marcha Mundial das Mulheres de São Paulo organizaram uma roda de conversa sobre as lutas feministas ao redor do mundo. Cerca de 35 mulheres se reuniram para receber feministas de vários lugares para compartilharem os desafios, lutas e conquistas das mulheres organizadas nos território; assim como experiências de companheiras daqui de São Paulo em diferentes contextos.
Ouvimos militantes da Marcha Mundial das Mulheres da África e Asia: Kawtar Abbes (África do Sul e Tunísia), Solange Kone (Costa do Marfim), Daya Laxmi Shrestha (Nepal), Asma Aamir (Paquistão) e Deodate Bisomerine (República Democrática do Congo).
Aqui neste carrossel de imagens separamos algumas imagens desta tarde muito rica em trocas e aprendizados
O portal Capire publicou uma síntese do que foram as discussões desta tarde. Abaixo é possível ler o texto em português, mas também está disponível em espanhol, inglês e francês:
Feminismo internacionalista: as lutas diversas das mulheres pelo mundo
Militantes da MMM na África e na Ásia refletem sobre a construção do feminismo em seus países. Publicado originalmente no Capire
Ao longo dos quase 25 anos de existência e atuação da Marcha Mundial das Mulheres, o movimento carrega consigo uma característica que o torna internacional e internacionalista: a relação ativa de mulheres de diversos países do mundo que, juntas e a partir de suas próprias realidades, se organizam na luta pela construção de um novo mundo. Durante esse tempo, a coordenação internacional da Marcha já foi sediada no Quebec, Brasil, Moçambique e agora se encontra na Turquia.
Apesar das diferenças culturais e políticas que existem entre as diversas regiões, a Marcha organiza agendas em comum, se fortalecendo no que há de semelhante e diverso. Esse texto foi escrito a partir de falas das militantes africanas e asiáticas Kaouther Abbes, Solange Kone, Daya Laxmi Shrestha, Asma Aamir e Deodate Bisomerine. durante uma atividade ocorrida em março de 2023, em São Paulo, Brasil.
A construção da Marcha Mundial das Mulheres impulsionou a organização internacional do feminismo popular. As mulheres demonstram em suas ações o quanto se sentem fortalecidas em saber que, enquanto lutam em seus territórios, outras tantas lutam ao redor do mundo. A solidariedade internacional e o internacionalismo são essa potência: entender que a luta conjunta é o que traz a transformação para um mundo sem capitalismo, patriarcado e racismo.
Solange Koné, militante na Costa do Marfim e integrante do Comitê Internacional, fala sobre questões comuns a quase todas as regiões da África, como o autoritarismo, a dependência econômica, as guerras e conflitos, e as tendências conservadoras que cerceiam e subordinam as mulheres. “Se considerarmos a África, com seus recursos minerais e petrolíferos, o que nos falta? Quase nada! Mas por que, diante de todas essas possibilidades naturais que temos, somos o continente mais pobre?”, questiona Solange.
Segundo Solange, a situação das mulheres no continente é difícil porque elas ainda são vítimas de casamentos forçados, são usadas como moedas de troca entre grupos armados, e, no nível da organização política, ainda precisam trabalhar muito para alcançar direitos básicos. “Nós, mulheres africanas, ainda não estamos suficientemente conscientes de nossa força. E, principalmente, do que nossa união pode alcançar”
Formação
Construir o feminismo no continente é o que garante os avanços e conquistas obtidas pelas mulheres. Para isso, estar em conexão com o feminismo antissistêmico de outras regiões do mundo é uma possibilidade de intercambiar perspectivas e métodos de luta e formar novas feministas. A Escola de Facilitadoras, de abrangência internacional, é um exemplo disso.
Na África do Sul, as mulheres da Marcha propõem formações em aliança com o Grupo de Ação para o Desenvolvimento [Development Action Group], que trabalha na organização e fortalecimento de comunidades no país. “Muitas pessoas da nossa equipe são jovens que estão tentando transformar a África do Sul, pressionando o governo por mudanças de políticas e promovendo ações em apoio a assentamentos informais”, explica Kaouther Abbes, militante da MMM no país.
O trabalho militante de Kaouther ainda inclui facilitar a comunicação de refugiados da região francófona da África no país; e trabalhos educacionais para crianças que ainda não podem ir à escola por falta de documentos. A militante vive atualmente em Bloemfontein, uma das primeiras cidades do país a instaurar o regime de Apartheid. Com um histórico de segregação e racismo, que se faz presente até hoje, os movimentos na África do Sul têm o desafio de denunciar a discriminação contra a diversidade de pessoas de muitas cores e culturas, nascidas no país ou imigrantes estrangeiros, que ali vivem ou transitam.
No Paquistão, a Marcha Mundial das Mulheres se articula a partir da organização Mulheres na Luta pelo Empoderamento [Women in Struggle for Empowerment – Wise]. Um dos objetivos da organização é a formação de jovens militantes na construção de movimento e liderança. “A MMM e a Wise no Paquistão estão trabalhando e se esforçando para estimular e promover a liderança na construção do movimento. Nós queremos dar oportunidade a mulheres jovens por meio de escolas feministas e conectar umas às outras. Trabalhamos em temas como imperialismo e colonização, o que é feminismo, e discutimos sexualidade”, explica Asma Aamir, militante da MMM e membro da Wise.
Experiências de formação também têm orientado a organização das mulheres na República Democrática do Congo (RDC). Em 2010, o país sediou o encerramento da 3º Ação Internacional da Marcha. No país, mais especificamente na capital, Bukavu, a presença de grupos armados afeta a segurança e vida das mulheres, que são as principais vítimas dos conflitos locais.
Justiça e paz
As mulheres nessas zonas de conflito estão suscetíveis aos mais diversos crimes sexuais, sendo forçadas a se deslocarem do seu território. O deslocamento coloca as mulheres em situação de precarização e dificulta o acesso à saúde e mesmo à comida. Uma das lutas do movimento feminista na República Democrática do Congo é por justiça e atendimento médico e psicológico para as mulheres vítimas de violência.
Para Deodate Bisomerine, advogada e militante da MMM no país, os avanços na justiça são uma conquista do movimento feminista.“Esses dez anos são uma vitória do ponto de vista jurídico, mas também precisamos trabalhar nas sutilezas dessa lei. Ainda há muito trabalho a ser feito para garantir que essa lei seja implementada”, afirma Deodate. Na busca por justiça, Deodate vê ainda mais desafios para as mulheres rurais. Sem a garantia do acesso à terra, as ações dos grupos armados e a usurpação da terra por empresas transnacionais também ameaçam as vidas no campo. “Na África, os processos judiciais costumam ser longos e caros, e o poder econômico das mulheres é baixo, o que as impede de ter acesso à justiça. Dentro da Marcha Mundial, percebemos que está se organizando uma espécie de rede de advogados para garantir a justiça para as mulheres”, explica Deodate.
Contra o fundamentalismo e o antifeminismo
No Paquistão, até o uso da palavra feminismo pode ser um risco. Asma expõe que atualmente “há muita instabilidade e conflito político. O governo local não é presente. Nessa conjuntura, fica mais difícil trabalhar pelos direitos das mulheres. Além disso, a palavra ‘feminismo’ já é suficiente para ficarmos em perigo. As pessoas não usam essa palavra. Para nós, na organização, se utilizamos essa palavra, sofremos as consequências”. As violências são individuais, com ameaças e ações violentas contra as militantes, mas também institucionais, proibindo que manifestações feministas aconteçam ou impedindo que os recursos cheguem às organizações, ainda que esses sejam direitos constitucionais.
“O que descobrimos é que, no nosso país, as mulheres defensoras sofrem ameaças de morte, assédio cibernético, estupro e até ameaças verbais e públicas de pessoas poderosas”, afirma Asma a partir de estudo em desenvolvimento pela Wise. Mesmo com tantos riscos, neste 8 de março de 2023, muitas jovens militantes foram às ruas. Elas usaram máscaras para impedir que suas famílias, a sociedade e os fundamentalistas religiosos as reconheçam.
“Quando o assunto é feminismo, enfrentamos problemas semelhantes a outros países”, diz Kaouther, mostrando as semelhanças entre os desafios das mulheres, mesmo em continentes diferentes. Na África do Sul, “a vida das mulheres é muito limitada por um histórico religioso e de antigos costumes. A representatividade de mulheres no parlamento é alta, mas ainda estamos lutando por mais espaço”, continua.
Os países africanos sofrem com uma invasão massiva de igrejas pentecostais, que afetam a vida das mulheres nas ruas e dentro de suas casas. Baseadas em um conservadorismo patriarcal, essas igrejas ainda retratam as religiões tradicionais como práticas condenáveis. Solange denuncia como pastores enriquecem com as contribuições dos fiéis e exercem um papel de controle sobre a vida das mulheres, chegando até a escolher com quem elas devem se casar. “Portanto, esses pastores pegam dinheiro para eles, enriquecendo às custas da população. As mulheres se casam sem motivos. Há um grande retrocesso com essa invasão e sempre me perguntei o que nossas autoridades estão fazendo para permitir que tudo isso aconteça. Enquanto pensamos na descolonização política, há colonização religiosa, como no passado”. Para Solange, é importante relembrar que o processo de colonização da África começou com a imposição de uma religião, e que, atualmente, esse cenário tem se repetido a partir de uma nova ordem de controle.
No Nepal, ao Sul da Ásia, as mulheres organizadas também têm sido fundamentais no enfrentamento a regimes autoritários. Até 2008, o país tinha como regime uma monarquia, em uma relação de submissão histórica à Grã-Bretanha. Em maio daquele ano, uma Assembleia Constituinte foi criada para abolir a monarquia, instaurando em seu lugar a República Federal Democrática do Nepal. Ainda que a nova Constituição tenha trazido avanços em questão de direitos e participação política para mulheres e para a classe trabalhadora, a implementação desses direitos não está garantida.
“O sistema patriarcal é muito cultural e forte no Nepal. As mulheres sofrem violência doméstica e outras formas de violência. O que tentamos fazer é trabalhar no nível local e nacional para construir alianças entre mulheres, com o governo e com organizações da sociedade civil, para fortalecer as mulheres. Há muitas militantes dos direitos das mulheres hoje, e também um aumento na participação das mulheres no governo”, conta Daya Laxmi sobre a organização de mulheres no país.
Lutar por autonomia e transformação
O papel do conservadorismo no controle dos corpos e da sexualidade das mulheres tem efeitos parecidos em muitos países. Através da organização e do feminismo, essas mulheres propõem formas irreverentes e transformadoras de lutar por sua autonomia.
No Paquistão, mesmo com o desafio de encontrar outras palavras e maneiras de expressar suas demandas, as mulheres defendem uma campanha pelo direito aos seus próprios corpos sob o conhecido slogan “meu corpo, minhas regras”. “Essa é uma palavra de ordem conflituosa, mas a utilizamos para confrontar a sociedade e os religiosos. As mulheres estão exigindo direito sobre seu corpo e sua liberdade”, explica Asma. Para se protegerem da perseguição, as mulheres usam as mídias sociais cautelosamente, tentando sempre proteger informações sensíveis e utilizando uma linguagem mais inclusiva. É a coletividade nas ruas que permite com que as mulheres possam se expressar mais livremente. “Nas ruas, abrimos espaço para nós na mídia e podemos retratar nossa imagem de forma positiva, para promover aceitação sobre a Marcha na sociedade”, conclui.
A participação política é uma reivindicação das mulheres para enfrentar a pobreza, fortalecendo a autonomia econômica. Sobre as lutas no Nepal, Daya explica: “Realizamos formações de construção de capacidades todo ano no setor social, econômico e político. Queremos fortalecer as mulheres, fazemos isso para que elas ocupem espaços de tomada de decisões. E estamos chegando lá, com cada vez mais participação de mulheres na vida política e pública, sobretudo no nível local”.