Por Miriam Nobre*
Publicado orginalmente na Página do MST
“Eu sempre fui passarinho”. Assim uma agricultora se apresentou, resumindo sua trajetória de idas e vindas. Imediatamente respeitei toda sua pulsão de vida, todo o seu trabalho e sabedoria para se livrar de arapucas e gaiolas. É disso que se trata a violência sexista: instrumento de controle e subordinação de cada mulher, no singular, e de todas as mulheres, como coletivo, a serviço da manutenção de privilégios dos homens e dos sistemas dominantes. Esses privilégios e sistemas não se sustentam só com base no gênero; neles, também se articulam classe e raça. Essa articulação se torna evidente na mobilização da violência contra as mulheres para facilitar a apropriação e o controle dos territórios.
Em 2010, durante a 3ª Ação Internacional da Marcha Mundial das Mulheres no leste da República Democrática do Congo, aprendi com nossas companheiras que a violência sexual não é somente uma expressão de força individual de cada agressor, mas um instrumento sistemático para destruir os elos e fragilizar as comunidades. Lá, muitas delas são posteriormente capturadas para o trabalho escravizado da extração de minérios utilizados em telefones celulares. Nestes dias em que um grupo armado com vínculos internacionais está prestes a cercar a cidade congolesa de Goma, volto a pensar nelas. A violência contra as mulheres entrelaça o passado colonial e a moderna base material da economia digital.
Anos mais tarde, li em La guerra contra las mujeres (2016), de Rita Segato1, que a engenharia social das guerras busca identificar onde está o pilar ou centro de gravidade de um tecido social comunitário. Atacando as mulheres, se ataca esse pilar, pois as mulheres sustentam e reproduzem a vida.
Os assassinatos de Bernadete Pacífico, liderança quilombola, em agosto de 2023, e de Fátima Muniz de Andrade, majé Pataxó Hã-hã-hãe, em janeiro de 2024, ambos na Bahia, aterrissam essa análise em nosso país. A forma como eram conhecidas, Mãe Bernadete e Nega Pataxó, nos fala da proximidade dessas mulheres com seu povo, nos faz pensar na intimidade e no cuidado que tinham com suas comunidades. Na ofensiva do capitalismo sobre os territórios, a violência contra as mulheres entrelaça as relações mais íntimas e os sistemas de poder patriarcais e coloniais.
A destruição e o genocídio perpetrados pelo Estado de Israel em Gaza tem uma linha de continuidade com essa guerra técnica que tem as mulheres como alvo. O que acontece hoje em Gaza é uma ofensiva aniquiladora que faz parte de uma guerra de ocupação em curso há 75 anos. As mulheres e suas organizações têm sido alvo da violência israelense, como vimos com o fechamento da União de Comitês de Mulheres Palestinas e a recorrente prisão e perseguição de suas lideranças.
A luta das mulheres nos territórios
A defesa do território-corpo-terra organiza o enfrentamento a essas ofensivas. A junção território-corpo convoca as feministas para as lutas de defesa dos territórios, onde natureza e comunidade são indissociáveis e se materializam em nossos corpos. O corpo das mulheres é central na luta feminista contra sua objetificação, padronização, medicalização e outras formas de apropriação. As corporações transnacionais que controlam o corpo das mulheres com contraceptivos hormonais de longa duração são as mesmas que controlam as sementes com tecnologias de transgenia ou edição genética. Falar em território-corpo-terra também convoca os defensores dos territórios a confrontar a violência contra as mulheres e a subjugação de seus corpos.
Em relato recolhido por Claudia Korol2, a mulher maia ki’iche Lolita Chávez contou que, quando organizavam a luta contra a mineradora Gold Corp, um companheiro questionou porque as mulheres falavam muito baixo. Sua companheira respondeu: “Quer que eu fale mais forte? Então, em casa não me tire a força, batendo em mim, me violentando. (…)Vocês são cúmplices da transnacional porque em casa nos tiram a força”.
A violência patriarcal tira a força das mulheres porque é instrumento de subordinação e controle. Angela Davis3 explica como o modo plantation de extração da força da natureza e das pessoas escravizadas para a produção de açúcar e algodão utiliza a violência contra as mulheres, e em particular o estupro, para desumanizar a todo o povo negro e reproduzir força de trabalho. Esse modo plantation organiza o trabalho até os dias de hoje, subordinando boa parte do povo negro em funções servis e precárias. Ele também esconde que as inúmeras atividades realizadas pelas mulheres negras são essenciais à vida.
No Brasil, essa violência está literalmente inscrita em nosso DNA. Em amostra analisada pelo projeto DNA do Brasil, 75% de nossa linhagem paterna (cromossomo Y) é herdada de homens europeus, enquanto a linhagem materna (DNA mitocondrial) é 36% herdada de mulheres africanas, 34% de mulheres indígenas e 14% de mulheres europeias. Já podíamos saber. Em diferentes partes do Brasil, pessoas nos contam que “minha avó foi pega no laço”.
A violência contra as mulheres é sistêmica: organiza a sociedade e as relações interpessoais. Agricultoras nos contam situações de violência patrimonial, em que seus companheiros cortam flores, usam herbicidas em suas hortas agroecológicas ou deixam de alimentar as criações quando elas viajam – sobretudo se elas se ausentam para participar de alguma reunião feminista. A violência nos toca a todas porque funciona como um freio na nossa livre expressão: cada uma de nós em algum momento já mudou a roupa, o jeito de dançar ou a rua por onde passa por medo da agressão.
A regeneração das mulheres que cuidam da terra
O compromisso de construir outros tipos de relações e instaurar territórios livres de violência contra as mulheres segue como desafio permanente para nossos movimentos. Trata-se de articular o singular e o coletivo: fortalecer em cada mulher vitimada a busca de caminhos para superar a situação de violência, fortalecer as comunidades para que as acolham, qualificar ações públicas para criar e manter ambientes em que nos sintamos seguras para nos mover.
É por saber e sentir o quanto é difícil que celebramos cada revolta. As mulheres se refazem garantindo a contínua regeneração de seus territórios. São quase aplastadas pela violência, mas transmutam em potência na relação com suas plantas. “Eu cuido da planta e ela cuida de mim”, me disse uma vez uma companheira agricultora. O mesmo passa com agricultoras urbanas que regeneram terra batida, transformando-a em horta, e assim se recuperam de situações de violência doméstica ou trabalham o luto pela perda de seus filhos assassinados.
Quando vemos essas mulheres no manejo da natureza, percebemos que são muito mais do que vítimas de violência. Percebemos o potencial de plenitude que trazem em si. Penso em uma delas, capaz de cuidar e reproduzir as sementes e mudas que suas companheiras de grupo trazem dos intercâmbios. No seu banco de sementes in situ, cria uma possibilidade de vida plena que alinha corpo-comunidade-território.
Organizando relatos sobre as percepções de agricultoras e quilombolas sobre a natureza, encontramos muitas menções à liberdade: ter a liberdade de plantar tudo misturado, de experimentar e cuidar dos caminhos para poder correr mundo. Não é possível separar as condições materiais e subjetivas para que a vida siga. É preciso defender nossos territórios: demarcá-los, redistribuir a terra e acolher as formas respeitosas de manejá-lo tanto quanto as inúmeras formas de poesia que as mulheres manifestam. Porque se retroalimentam, é preciso construir força para parar as guerras contra os povos e contra as mulheres.
1 Segato, Rita. La guerra contra las mujeres. Madri: Tradicantes de sueños, 2016.
2 Korol, Claudia (comp). Feminismos populares. Pedagogías y políticas. Buenos Aires: Editoral Chirimbote, 2016.
3 Davis, Angela. Mulheres, raça e classe. São Paulo: Boitempo, 2016.
*Miriam Nobre é integrante da equipe da SOF Sempreviva Organização Feminista, da Marcha Mundial das Mulheres e da coordenação do GT de mulheres da Articulação Nacional de Agroecologia.
**Editado por Fernanda Alcântara