Por Alessandra Ceregatti,
Cintia Barenho,
Claudia Prates,
Maria do Carmo Bittencourt,
Natália Blanco e
Thayane Cazallas do Nascimento*
Publicado originalmente no Brasil de Fato
Diante do estado de calamidade pública vivida no Rio Grande do Sul, é urgente pensar a justiça socioambiental como eixo central na reconstrução do estado, em harmonia com a natureza, em oposição às falsas “soluções” apresentadas pelo poder corporativo. Trata-se da maior catástrofe ambiental da história do estado: mais de 2 milhões de pessoas foram atingidas diretamente pelos alagamentos ou deslizamentos de terra. Até 15 de maio, mais de 76 mil estão em abrigos localizados em todo estado. Há 148 pessoas mortas, 125 pessoas desaparecidas e outras 806 estão feridas.
A sustentabilidade da vida está profundamente ameaçada no estado, com milhares de pessoas sem acesso à água, energia elétrica, meio de transporte e comunicação. Cerca de 40% da rede pública estadual de ensino foi afetada. Escolas estão sendo usadas como abrigos, aulas estão suspensas, unidades de saúde e outros equipamentos da assistência social e órgãos públicos embaixo d’água. Criações de animais e roças rurais e urbanas foram totalmente destruídas e a biodiversidade foi devastada em muitas regiões.
Em meio a esse cenário desolador, os movimentos sociais e as organizações populares assumem mais uma vez a liderança no enfrentamento à fome, garantindo a soberania alimentar para milhares de pessoas que estão em vulnerabilidade nos abrigos ou alojadas em casas de família e amigos e que se encontram totalmente destituídas de seus meios de vida.
A Marcha Mundial das Mulheres (MMM) do Rio Grande do Sul está envolvida ativamente em ações de solidariedade nas cidades de Caxias do Sul, Pelotas, Porto Alegre, Rio Grande, Rio Pardo, São Leopoldo, Santa Cruz, Santa Maria e Viamão, em uma aliança estratégica junto com outros movimentos como MTST, MAB, MST, MNU, Amigas da Terra, CUT, Cáritas e uma infinidade de coletivos e organizações locais.
Em Porto Alegre, capital do estado, a iniciativa da MMM, chamada Periferia Feminista, que acontece no Morro da Cruz, tem distribuído cerca de 900 marmitas por dia, além do atendimento com kits de higiene e roupas para as famílias desabrigadas, inclusive guaranis da Lomba do Pinheiro e outras aldeias indígenas, em apoio ao Centro de Referência Indígena. Já em Caxias do Sul, participamos da iniciativa da Saboaria Popular Las Margaritas, que produz barras de sabões, sabonetes e sabões líquidos para doação às famílias atingidas pelas chuvas. Na cidade de São Leopoldo, nossas companheiras estão atuando dentro dos abrigos na organização de uma cozinha solidária permanente, que siga funcionando depois da emergência climática, pois as dificuldades certamente continuarão por muito tempo ainda.
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Vulnerabilidade das mulheres e segurança em tempos de calamidade
Mais uma vez, há um aumento da sobrecarga de trabalho das mulheres diante da necessidade de desenvolver alternativas frente à fome, à perda de meios de vida e moradia e ao surgimento de doenças. Soma-se a isso o aumento da violência machista, que traz complexidades nos cuidados e proteção exigidas no encaminhamento desses casos. É preciso garantir e fortalecer a autonomia das mulheres em sua diversidade uma vez que, em situação de extrema vulnerabilidade física, emocional e material, o que resta para as pessoas são os vínculos afetivos e comunitários. Por isso, a garantia de que elas estejam próximas de suas redes de apoio é essencial.
Com as denúncias de casos de violência contra mulheres, os movimentos feministas estão num esforço coletivo de mapear, difundir e fortalecer os abrigos em funcionamento na relação com os serviços públicos. É importante lembrar que, no último período, tanto o Centro Estadual de Referência da Mulher quanto o Centro Municipal de Referência da Mulher foram equipamentos públicos que os governo de direita estadual e municipal atuaram fortemente para sucatear e fechar.
Entre as ações realizadas pelos movimentos, destacamos o protocolo entregue pelas mulheres indígenas com um olhar específico de atendimento às mulheres aldeadas atingidas e também o protocolo entregue pelo conjunto de organizações feministas em parceria com a Ordem de Advogadas do Brasil (OAB) Mulher para o Ministério das Mulheres. O documento entregue, e em vias de ser assinado pelo presidente Lula, prevê diretrizes para o atendimento e acolhimento de mulheres em situação de calamidade com olhar especial para a diversidade do conjunto das mulheres, levando em consideração as questões de gênero e sexualidade (mulheres LBTs – lésbicas, bissexuais e trans), raça, com deficiência, entre outras. Outra demanda apresentada para o poder público é a contratação de profissionais para estruturar o atendimento e dar suporte em meio à calamidade pública, como assistentes sociais, advogadas e psicólogas, já que este é apenas o início de um longo período de cuidados, acompanhamentos e mudanças na vida das mulheres e crianças gaúchas.
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Aliança entre setores populares e Estado para a reconstrução solidária
Essa grande rede de solidariedade dos movimentos sociais é coletiva e tem trajetória de construção de um projeto de Brasil popular, com foco na justiça socioambiental, no combate à pobreza e à desigualdade. Não tem nada a ver com as “ações de voluntariado” de empresários ou indivíduos, intensamente propagandeadas pelos grandes meios de comunicação. A narrativa hegemônica tenta invisibilizar as ações realizadas pelos movimentos sociais, bem como aquelas realizadas pelo governo federal, na mitigação dos danos e no suporte ao estado do Rio Grande do Sul. Essa ocultação faz parte de um movimento da extrema direita, conservadora, racista e misógina, que divulga mentiras (“fake news”) com objetivo de desmoralizar as iniciativas, destilar ódio e criar ainda mais dificuldades para se avançar no que de fato precisa ser feito: cuidar, salvar vidas e reconstruir o estado.
No início dos anos 2000, o Rio Grande do Sul e sua capital, Porto Alegre, eram mundialmente conhecidos como centro da alternativa ao modelo capitalista neoliberal, racista, patriarcal, heteronormativo, colonialista. Era o estado que recebia os fóruns sociais mundiais e onde práticas como a economia solidária e feminista e a democracia participativa comandavam a construção do outro mundo possível. Em menos de 20 anos, com o rompimento democrático no Brasil a partir do golpe que retirou Dilma Rousseff do poder em 2016, forças neoliberais e conservadoras, com Temer, Bolsonaro e seus aliados à frente, o estado passou a ser um dos principais representantes da extrema direita fascista do país. E, ao mesmo tempo, o Rio Grande do Sul se converteu em vítima desse mesmo modelo de desenvolvimento exploratório, fundado na exportação de produtos agropecuários. Não há como ignorar a responsabilidade dessas gestões neoliberais e negacionistas da crise ambiental no caos atual: são as mesmas que implementaram políticas de desmonte, privatizações e terceirizações de serviços públicos como o de drenagem das águas pluviais, esgotamento sanitário e manutenção de instalações e infraestrutura de controle das enchentes, entre outras.
Mesmo nesse período, seguimos em resistência no Rio Grande do Sul dizendo “sim à vida, não à destruição!”, como em 2016, quando denunciamos o empreendimento que propunha transformar numa cratera o Parque do Delta Jacuí, Zona Núcleo da Reserva da Biosfera da Mata Atlântica, patrimônio cultural e paisagístico do estado a apenas 1,5 km do Rio Jacuí, responsável por mais de 80% da água que chega ao Guaíba e abastece Porto Alegre e parte da Região Metropolitana.
Na pandemia e nas enchentes de 2023, participamos da criação da Plataforma dos Movimentos Populares para o Salvamento dos Atingidos pela Crise Climática, que tem as cozinhas de emergência como instrumento para fortalecer o movimento comunitário. Reivindicamos também outros espaços fundamentais que possam atender diretamente as mulheres e diminuir nossa sobrecarga de trabalho, como as lavanderias comunitárias, espaços de convivência, escolas infantis e centros de cuidados das pessoas que mais demandam, como crianças, idosos, pessoas com alguma deficiência e doentes crônicos.
Com a suspensão do pagamento de juros da dívida pública do estado por três anos, iniciativa do governo Lula, e a destinação de recursos do Banco dos Brics, anunciada por Dilma Rousseff, além de outras fontes, cria-se uma base financeira de mais de 50 bilhões de reais para reconstruir o estado. Esse montante é voltado para ações de enfrentamento e mitigação dos danos ambientais, sociais e econômicos, como obras para reconstrução, ampliação e melhoria de infraestruturas afetadas, diminuição dos efeitos das chuvas e enchentes, contratação de trabalhadores e serviços, financiamento e incentivos para remoção de famílias e empresas das áreas consideradas de risco, compra de equipamentos e materiais.
Sabemos que estão vindo muitos recursos nacionais e internacionais para a reconstrução do Rio Grande do Sul e é necessário que nossas organizações estejam à frente dos debates, lutas e construções para obter os avanços necessários à organização e à unidade popular tão sonhada pelos movimentos socialistas.
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A partir do feminismo, afirmamos que as alternativas passam pela construção e fortalecimento de economias soberanas e autossuficientes, em que produção e consumo, sobretudo de insumos fundamentais para garantir a vida, como alimentação e energia, sejam descentralizados e politizados. Projetamos um mundo em uma relação harmônica com a natureza pois somos todos inter e ecodependentes.
Denunciamos o racismo ambiental, que tem suas raízes no sistema colonial de ocupação e usurpação de territórios, corpos e modos de vida. Mais do que nunca, agora é o momento de superarmos esse paradigma capitalista, racista, colonialista, patriarcal e heteronormativo. As propostas e alternativas para colocar em prática um modelo econômico baseado em princípios de solidariedade, dos cuidados e dos comuns partem das experiências e saberes daquelas/es que conhecem e vivem os territórios e todos os vínculos e dinâmicas que ali existem. Modos de organização e produção pautados na centralidade da manutenção da vida e nos cuidados já estão em prática e resultam de anos de construção popular pelos movimentos sociais e incluem a agroecologia, o feminismo, os saberes dos povos e comunidades tradicionais, indígenas, quilombolas e de terreiros.
Em 2023, na última edição da Marcha das Margaridas, pautamos um projeto de país a partir do que as mulheres desenvolvem. Tem se afirmado isso aqui no Brasil com cada vez mais força por parte das mulheres rurais, do campesinato, das matas, das águas, das roças, hortas e quintais, rurais e urbanas, dos quilombos, aldeias e assentamentos, das associações e coletivos de bairro, nos terreiros, nas cozinhas comunitárias, nas casas de acolhimento. Em todos esses espaços, é possível encontrar experiências que enfrentam os problemas do cotidiano, a relação de cuidados com a natureza, a soberania alimentar, a educação e o direito à autonomia numa perspectiva popular, feminista, anticolonial e não antropocêntrica. Isso tudo em um só movimento.
Por isso, reconstruir o Rio Grande do Sul a partir do paradigma da sustentabilidade da vida é possível!
*Claudia Prates, Cintia Barenho, Maria do Carmo Bittencourt e Thayane Cazallas do Nascimento são militantes da Marcha Mundial das Mulheres do Rio Grande do Sul. Alessandra Ceregatti e Natália Blanco (integrante da equipe da SOF) são militantes da Marcha Mundial das Mulheres de São Paulo.
** Este é um artigo de opinião e não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato.
Edição: Rodrigo Chagas