Por Sonia Coelho, da equipe da SOF
Nada justifica a violência sexual, mas aumentar a pena não resolve o problema.
Há muitos anos, o movimento feminista vem denunciando o aumento e a crueldade dos estupros no Brasil. É muito comum que, frente a um crime brutal como o estupro coletivo que sofreu a jovem do Rio de janeiro, rapidamente as pessoas venham com propostas de aumentar as penas de prisão ou aceitar pena de morte.
Sabemos que estas propostas não resolvem e não previnem a situação do crime do estupro e estupro coletivo.
Entendemos, sim, que a impunidade dá aos criminosos a certeza de que seus atos não terão consequências, o que os deixa em situação confortável para continuar estuprando e praticando violências. Mas, para além da impunidade, muitas coisas precisam mudar nesta sociedade patriarcal, machista racista e misógina, da qual a violência sexual é fruto.
O 9° Anuário Brasileiro de Segurança Pública revela que 90% das mulheres, principalmente as mulheres jovens e pobres, têm medo de ser vítimas de agressão sexual. Seu medo não é em vão. A nota técnica sobre estupro realizada pelo IPEA revela que, no Brasil, acontece um estupro por minuto e somente 10% dos casos são registrados nas delegacias. É isto que precisa ser alvo da nossa preocupação: por que as mulheres, crianças e meninas não denunciam os estupros?
Não denunciam porque têm medo, vergonha, porque são ameaçadas pelos criminosos, são revitimizadas e constantemente culpabilizadas pela violência sofrida. É bom lembrar que, toda vez que há uma mulher denuncia um estupro, outras se encorajam e fazem o mesmo – descobre-se muitas vezes que o estuprador não havia estuprado somente uma, mas várias mulheres.
O caso da jovem do Rio de janeiro vítima do estupro coletivo é chocante e revelador de como uma vítima de estupro pode ser transformada em culpada. Ela mesma disse que se sentiu culpabilizada pelo delegado, e em outra entrevista disse que se sentiu “um lixo”.
O Delegado, antes de qualquer investigação já julgou-a culpada e lhe fez perguntas descabidas para tentar justificar o estupro coletivo e proteger os criminosos. A forma como este delgado agiu não ajuda para que se possa revelar, inclusive, possíveis outros crimes ocorridos no mesmo lugar, apelidado de “Abatedouro”. Pelo contrário: a família de um dos estupradores organizou um ato na comunidade contra a jovem, defendendo o estuprador.
O delegado foi afastado do caso. Será que esta seria uma penalidade justa neste caso? Será que este delegado tem condições de exercer um cargo público? Não, ele deveria ser imediatamente exonerado ou, no mínimo, ser afastado para fazer uma longa formação sobre violência contra a mulher para ter preparo para conduzir uma investigação sobre violência sexual.
A pergunta do delegado sobre “se ela praticava sexo grupal” é a tentativa de confundir estupro com sexualidade, o que nada tem a ver. Estupro é o exercício do poder sobre a mulher, considerada objeto de posse. Neste caso, o corpo dela ainda foi exposto como um troféu na internet: um objeto destruído.
Um dos obstáculos para a punição da violência contra a mulher é o machismo impregnado no judiciário e em todos os âmbitos da justiça que culpabiliza as vítimas. A conduta do delegado e do judiciário apenas explicita como a sociedade machista e patriarcal tem banalizado e tem tratado como irrelevante a violência contra a mulher.
É esta mesma sociedade que impõe às mulheres e meninas determinados comportamentos, padrões de beleza e de sexualidade que aparentam trazer consigo a liberdade. Por exemplo, a menina na escola ou comunidade que não transa ou se relaciona com vários homens é cobrada e se sente fora do padrão ou da turma, mas quando esta menina entra no modelo, é também cobrada e culpabilizada por qualquer violência que venha a sofrer. Ela pode dormir na casa do namorado, mas se for estuprada, “foi ela que procurou”.
Isso acontece porque, nesta sociedade, as mulheres não são livres e não tem autonomia. A pseudo liberdade que usufruímos é, muitas vezes, interceptada pela violência que é o mecanismo patriarcal de controle do nosso corpo, dos comportamentos e da nossa vida. Uma violência fundada na profunda desigualdade em que vivem as mulheres na sociedade.
A imagem da menina chegando na delegacia toda coberta para não mostrar o rosto e a imagem de um estuprador saindo rindo nos causa profunda indignação. Ela agora precisou sair da sua comunidade para ser protegida, mas eles, os estupradores, mesmo com a pressão para serem presos, não terão problemas de continuar suas vidas normalmente e na mesma comunidade, pois o estigma da violência do estupro ficou para ela.
Por isto, aumentar a pena não resolve. O que precisamos aumentar nesta sociedade é a liberdade e a autonomia das mulheres. Do ponto de vista da política pública, precisamos fortalecer nos estados e municípios a Lei Maria da Penha, fundamentalmente em seus aspectos preventivos. É preciso fortalecer o Pacto Nacional de Enfrentamento a Violência Contra a Mulher nos estados brasileiros. É preciso resistir contra o golpe à democracia em nosso país, pois sem democracia a violência somente aumentará. É preciso que cresça a indignação de toda a sociedade em relação à violência e aos estupros, seja na rua, na casa, no trabalho, na escola, nos transportes e nos espaços públicos.
É preciso, fundamentalmente, aumentar a solidariedade às mulheres vítimas de violência e fortalecer a auto organização das mulheres como um elemento fundamental de enfrentamento à violência.
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Nem ma palavra sobre o debate de gênero nas escolas?
Marília, a SOF e a MMM fomos algumas das primeiras a nos colocar e a acompanhar nos recentes debates dos planos de educação, convocamos já audiências públicas que reuniram mais de 150 mulheres para debater educação e gênero, temos participado de debates em escolas, nas ocupações dos secundaristas etc. Obrigada por lembrar do tema, ele está com certeza dentro de nossas lutas permanentes. Se estiver em busca de mais materiais nossos a este respeito, sugerimos a seção de Notas e Posicionamentos do site da MMM e os textos do blog da MMM que pautam feminismo e educação. Abraços e estamos juntas na luta!