No dia 26/12/2011, o Ministério da Saúde publicou a Medida Provisória 557/2011, que institui o Sistema Nacional de Cadastro, Vigilância e Acompanhamento da Gestante e Puérpera para Prevenção da Mortalidade Materna que prevê um cadastro universal das gestantes e puérperas buscando identificar as que estão com gestação de risco. Segundo o Ministério da Saúde essa iniciativa visa a responder a uma preocupação de que os municípios e Estados fortaleçam sua intervenção e garantam a realização de uma atenção eficaz e humanizada como parte do esforço de redução da mortalidade materna a níveis aceitáveis segundo a OMS. É conhecida a gravidade dos índices de mortalidade materna no Brasil, seu corte de classe e raça e, portanto, a urgência que uma Política Integral de Atenção à Saúde da Mulher priorize essa questão.
No entanto a edição desta MP levanta várias dúvidas quanto à sua adequação e se, de fato, é necessário criar esse tipo de mecanismo e, mais ainda, por meio de um dispositivo de Medida Provisória. Em primeiro lugar chama a atenção de maneira contundente o fato de que ela mexe na lei geral que organiza o sistema de saúde (Lei 8080 de 1990) para introduzir na legislação a questão dos direitos do nascituro. A introdução da idéia de direitos do nascituro tem sido, ao longo de várias décadas, uma questão central na disputa realizada pelos setores que buscam restringir os direitos das mulheres à autodeterminação e autonomia em relação à maternidade. Um debate que se contrapõe não apenas ao movimento de mulheres, mas a todos os setores progressistas que reconhecem a importância de se resguardar e reafirmar o direito das mulheres frente às tentativas constantes de introduzir esta contraposição no ordenamento legal brasileiro.
Não é pouco lembrar que, até agora, o marco principal é a Constituição brasileira onde prevaleceu o direito à vida desde o nascimento e os direitos das mulheres enquanto gestantes, recusando-se essa noção movida principalmente por influências religiosas conservadoras. O mais preocupante, portanto, é que a MP 557/2011, introduz a figura do nascituro como portador de direitos, quando é fato que esse não existe fora do corpo da gestante.
O fato é que esses setores retrógrados não conseguiram introduzir essa questão na legislação no Brasil até o momento, ainda que nos últimos anos tenha se acirrado a pressão para se definir os direitos das pessoas, e neste caso em especial das mulheres pela ótica de ideologias religiosas conservadoras. É inaceitável que isso seja realizado pelo Ministério da Saúde e a partir de uma questão tão sensível como propostas de redução da mortalidade materna. Com isso, o Ministério assume a linguagem dos setores reacionários, o que é inadmissível, e retrocede no processo de acúmulo que o SUS representa em termos de uma concepção de saúde vinculada ao pleno exercício de direitos.
Evidentemente o caráter persecutório da MP torna-se mais forte pelo fato de que no Brasil as mulheres são criminalizadas pela realização do aborto. Nos últimos anos há uma ofensiva conservadora e aumento da perseguição e criminalização das mulheres, inclusive com a interdição policial de clínicas, com a utilização de prontuários e registros das usuárias. As mulheres não podem exercer sua autonomia diante de uma gravidez indesejada e ficam expostas a riscos para sua saúde, sua integridade física e liberdade.
É evidente que o cadastro proposto é universal e compulsório, como se pode ler no texto da MP. Se é possível tomar medidas para que isso não seja utilizado como mais um instrumento de restrição de liberdade das mulheres em sua vida reprodutiva, os argumentos do Ministério da Saúde de que “universal” não se confunde com “compulsório” só faz sentido se isso corresponde a uma sugestão do Ministério de que as mulheres não procurem os serviços de saúde! Aliás, todas nós esperamos e queremos um atendimento integral à saúde das mulheres e que todas possam estar inscritas no sistema de saúde. O que torna, portanto, mais estranha e incompreensível a necessidade de tal cadastro específico de gestantes, mesmo considerando a problemática da mortalidade materna.
Desde o início da gestão, tem prevalecido nas ações do Ministério da Saúde uma perspectiva conservadora que não leva em consideração a saúde integral das mulheres e está centrada fundamentalmente no aspecto materno infantil. Nesse sentido a MP é uma continuidade da rede cegonha e de uma visão redutora do papel das mulheres como mães e reprodutoras.
Também chama a atenção a introdução da proposta de um Comitê Gestor Nacional sem qualquer participação da sociedade civil, e principalmente de Comissões de Cadastro, Vigilância e Acompanhamento de Gestantes e Puérpuras de Risco quando na realidade já existe no sistema de saúde, com participação dos movimentos e da sociedade civil, os Comitês de Morbi-Mortalidade Materna, fruto da luta e reivindicação dos setores organizados como parte de toda uma luta dos movimentos sociais por um sistema de saúde público e com controle social. A proposta não segue o acúmulo do SUS, prevendo em sua composição apenas a participação de profissionais e gestores, e desconhece o papel do movimento organizado nesses instrumentos.
Finalmente, o enfrentamento da mortalidade materna exige enfrentar a terceira causa de mortalidade materna que é o abortamento inseguro. É amplamente conhecido que isso só será possível se for respeitada a autonomia das mulheres e o aborto diante de uma gravidez indesejada for parte da política de saúde pública.
É obrigação do Ministério da Saúde ter políticas de atenção à maternidade que busquem reduzir a morbi-mortalidade materna e para isso é necessário qualificar a assistência e garantir o acesso e acolhimento nas unidades e hospitais, tanto na regulamentação para o atendimento privado como nos serviços sob responsabilidade da rede SUS. Nesse sentido a o benefício de R$50,00 terá um papel importante para o deslocamento daquelas que têm dificuldade financeiras. Sua eficácia, entretanto, depende da existência de outras políticas sociais associadas. Mas, mais uma vez, não é isso o que justifica a edição desta medida provisória.
É urgente que o Ministério da Saúde retire essa MP e articule suas ações para redução da mortalidade materna em acordo com mecanismos e as diretrizes já previstos no SUS e nas Conferencias Nacionais de Saúde.
Por isto, nós, da Marcha Mundial das Mulheres, exigimos:
• Que o Ministério da Saúde retire a MP 577/2011 no sentido de garantir a integralidade da saúde da mulher em consonância com seus direitos e garantias individuais;
• Que o Ministério da Saúde retome o debate sobre os direitos sexuais e reprodutivos das mulheres e que o governo reafirme a autonomia política das ações condizentes com os princípios do Estado Laico, tomando medidas sem se curvar para conservadorismos ou morais religiosas;
• Um compromisso explícito do governo de impedir todas as ações de retirada de direito das mulheres nas políticas públicas;
• Que o Ministério da Saúde e o governo federal em conjunto com a sociedade civil enfrentem o debate do aborto inseguro e a necessidade de políticas de atendimento às mulheres que decidem interromper uma gravidez indesejada e, portanto, que o aborto seja descriminalizado e legalizado.
Marcha Mundial das Mulheres