Por Bianca Santana
Qualquer proposta de segurança pública que não se paute em reduzir os alarmantes dados do genocídio negro e de feminicídio não pode ser considerada séria. Em 20 anos, aumentou 428% o número de assassinatos de jovens negros por arma de fogo. São 63 execuções por dia, 23 mil por ano, uma a cada 23 minutos. Quanto às mulheres negras, entre 2003 e 2013, a taxa de homicídios aumentou 54%. Somente nos três primeiros meses de 2019, 126 mulheres foram vítimas de feminicídio e outras 67 sofreram tentativas de homicídio.
Só no Rio de Janeiro, dos aproximadamente 6.000 homicídios registrados em 2018, 1534 foram realizados pela polícia. Ou seja, 25% das pessoas foram assassinadas pelas forças de segurança do Estado. É importante evidenciar que qualquer forma de abuso e desvio de poder é corrupção. Quando servidores utilizam recursos públicos para executar pessoas, em um país cuja Constituição veda a existência de pena de morte expressamente, vivenciamos a forma de corrupção que atinge de forma mais cruel nossa democracia.
A proposta de Sergio Moro para a segurança pública e combate à corrupção, chamada de “Pacote Anticrime” ou “Pacote Moro”, em trâmite na Câmara Federal e também no Senado, não oferece nenhuma solução para os problemas citados acima. Pelo contrário. Sem embasamento em evidências, pesquisas ou experiências internacionais, fortalecem o crime organizado, beneficiam a indústria armamentista, o mercado de dados pessoais e garantem licença para matar a policiais.
A ampliação do chamado excludente de ilicitude, como propõe o pacote, dá a militares e civis a garantia de que não serão punidos se matarem alguém alegando risco iminente ou impacto de forte emoção. Na prática, qualquer disparo policial pode ser legalizado. Em entrevista no dia primeiro de agosto, Bolsonaro disse: “ Nós temos que dar uma retaguarda jurídica para as pessoas que fazem a segurança: policial civil, militar, federal, rodoviário. Em operação, o pessoal tem que usar aquela máquina que tem na cintura, ir para casa e no dia seguinte ser condecorado, não processado (…). Os caras vão morrer na rua igual barata, pô. E tem que ser assim”. Witzel, governador do Rio de Janeiro, sobe em helicópteros com policiais para atirar em pessoas nas favelas, comemora na frente das câmeras quando uma pessoa é assassinada. Dória, governador de São Paulo, parabeniza policiais por “colocarem bandidos no cemitério”. Todos trabalhando de forma articulada para aprofundar, ainda mais, o genocídio em curso no Brasil.
Outro terrível aspecto do projeto é a ampliação do banco nacional de perfil genético, realizando exames de DNA em todas as pessoas condenadas, mesmo nos casos em que este tipo de material não ofereça contribuição às investigações. Do material já coletado de acordo com a lei atual, em alguns crimes praticados com violência, muito pouco é, de fato, utilizado. Das dez mil amostras de DNA de suspeitos de crimes no Brasil, apenas 10 decisões judiciais foram tomadas a partir destes dados. O pacote não apresenta nenhuma proposta para aprimorar o uso dos dados já existentes, mas propõe expandir indiscriminadamente a coleta de amostras de DNA, sem nenhuma justificativa e com altos riscos sociais.
Ao indexar o DNA de pessoas presas, o Estado tem a possibilidade de adentrar, sem autorização, à intimidade de um grande número de pessoas, identificando toda a rede de parentesco das pessoas encarceradas. Os dados poderão ser utilizados por empresas, bancos, sistemas de saúde para, de forma eugenista, prejudicarem inúmeras pessoas. Se mães, filhas, irmãs de pessoas presas já são discriminadas, o que poderá acontecer caso as empresas onde essas mulheres trabalham tenham acesso a essa informação?
Precisamos barrar todo o pacote e construir uma política de segurança pública que seja, de fato, para preservar a vida e a segurança de todas e todos. Para uma análise mais completa dos tópicos apresentados acima, a Coalizão Negra por Direitos, com representação de 74 entidades do movimento negro brasileiro, produziu uma nota técnica sobre o Pacote, disponível em: https://coalizaonegrapordireitos.org.br/documentos/
Bianca Santana é jornalista e associada da SOF. Pela Uneafro Brasil, tem colaborado na articulação da Coalizão Negra Por Direitos.