Em entrevista exclusiva à Fórum, Miriam Nobre, ativista da Marcha Mundial das Mulheres, fala sobre o uso de equipamentos por agricultoras familiares

Por Iara Vidal, publicado originalmente na Fórum

Há uma separação que atribui aos homens o papel de provedores e produtores de mercadorias, enquanto às mulheres cabe o trabalho de cuidado e a reprodução social da vida, frequentemente desvalorizado ou invisibilizado.

No contexto rural, essa divisão é reproduzida pela ideia de que as mulheres “ajudam” no trabalho do roçado, enquanto são responsáveis pelo quintal doméstico, que inclui hortas, pomares e pequenos animais.

Essas são reflexões de Miriam Nobre, da Marcha Mundial das Mulheres (MMM), colocadas durante entrevista exclusiva à Fórum. Ela é engenheira agrônoma, mestre pelo Programa de Estudos em Integração da América Latina (PROLAM-USP).

Miriam integra a equipe da Sempreviva Organização Feminista (SOF), ONG com sede em São Paulo (SP), onde desenvolve atividades de formação e pesquisa-ação em agroecologia, economia feminista e economia solidária. Coordenou o secretariado internacional da MMM entre os anos de 2006 e 2013. Integra a Rede Internacional de Pesquisadoras em Feminismo e Agroecologia.

“Esse trabalho, muitas vezes, não é reconhecido como parte do sustento da família, apesar de sua importância para a segurança alimentar e a economia local, por meio do autoconsumo, trocas e pequenas vendas”, disse.

A ativista participou na última terça-feira (26) do “Fórum Brasil-China: Marcos para uma nova cooperação para o desenvolvimento compartilhado” no painel “Estratégia Tecnológica para a Agricultura Familiar na Cooperação Brasil-China”.

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Em sua fala no evento, Miriam contextualizou o uso de máquinas agrícolas por mulheres da agricultura familiar.

Mauro Ramos (Brasil de Fato) – Miriam Nobre de cabelos grisalhos participa de painel em Brasília.

“A tecnologia se desenvolve dentro de um contexto marcado pela divisão social, sexual e internacional do trabalho. As novas tecnologias precisam considerar não apenas o olhar sobre os corpos masculinos no seu desenvolvimento, mas trazer as perspectivas das mulheres para esse processo de produção tecnológica”, observou.

Tecnologia para mulheres

Na conversa com a Fórum, Miriam observa que quanto mais avançada a ferramenta, menor a presença feminina. 

“Há relatos de mulheres que preferem não aprender a operar tratores por temerem a sobrecarga, já que, ao dominarem essa habilidade, esperam-se que assumam mais responsabilidades”, pondera 

A exclusão das mulheres dessas atividades tecnológicas seria, para ela, uma imposição patriarcal que reforça privilégios masculinos e limita a mobilidade e a autonomia feminina.

Estudos feministas sobre tecnologia

Miriam cita o trabalho da antropóloga e feminista marxista italiana Paola Tabet, reconhecida por suas contribuições ao estudo da divisão sexual do trabalho e das tecnologias sob uma perspectiva feminista.

Em seu ensaio “As mãos, os instrumentos, as armas“, publicado na coletânea “O Patriarcado Desvendado“, que reúne textos de mais duas feministas marxistas, Colette Guillaumin e Nicole-Claude Mathieu, Paola analisa como, historicamente, as mulheres foram excluídas da fabricação e do uso de ferramentas e armas, resultando em um “gap tecnológico” entre os gêneros. 

A antropóloga italiana argumenta que essa exclusão não apenas limitou as atividades femininas a tarefas mais simples e monótonas, mas também reforçou a dominação masculina baseada na violência e no controle dos instrumentos de produção.

Paola destaca como as mulheres foram historicamente mantidas em um estado de subequipamento técnico e ignorância deliberada para perpetuar sua subordinação. A autora afirma que essas desigualdades foram e ainda são sustentadas por violência sistêmica, apontando para a necessidade de um combate ativo às estruturas patriarcais.

Questão de privilégio masculino

Para Miriam, o tema levantado por Paola vai além da tecnologia e reflete uma lógica que restringe as mulheres ao espaço doméstico, dificultando seu acesso à mobilidade e à participação em espaços comunitários.

A ativista comenta que a questão da mobilidade nas zonas rurais está diretamente relacionada à manutenção de poder e privilégio. Em muitos casos, cita, o trator é o único veículo disponível para a família, sendo frequentemente controlado pelos homens. 

Para as mulheres, observa, o acesso a meios de transporte como motos ou carros, que garantem maior autonomia para se deslocarem entre comunidades, é significativamente mais difícil. Essa realidade reflete a desigualdade estrutural que restringe as oportunidades femininas e reforça hierarquias tradicionais.

“Tem a ver com uma imposição patriarcal de confinamento das mulheres no espaço doméstico, no redor da casa. E aí sempre, ou seja no passado, seja para se movimentar na comunidade, é como se elas estivessem um pouco na condição de estrangeiras”, diz.

O mito do trabalho “leve”

Nesse contexto das mulheres do campo, Miriam destaca a implementação do programa Quintais Produtivos (leia abaixo), uma reivindicação da Marcha das Margaridas, que ela considera um avanço recente. 

No entanto, na avaliação de Nobre, a iniciativa, embora bem-intencionada, não prioriza a facilitação do trabalho feminino nem a equipagem adequada desses espaços. 

Ao abordar a percepção das mulheres sobre o trabalho no campo, ela destaca uma divisão persistente entre tarefas consideradas “leves” e “pesadas”. Independentemente da carga real, as atividades desempenhadas por mulheres são frequentemente rotuladas como leves, minimizando sua importância.

Em oficinas ministradas por ela, muitas mulheres relatam não se enxergar no uso de máquinas como tratores.

“Era mais comum encontrar mulheres levantando canteiros com enxadas ou lidando com animais para preparar o solo, enquanto o trator era percebido como um território masculino”, explica. 

Ela relembra o relato de uma agricultora que, ao ser incentivada a operar um trator, expressou receio de acumular ainda mais tarefas: “Se eu aprender, até isso vou ter que fazer”.

Nobre aponta que, paradoxalmente, a introdução de tecnologias no campo tem afastado ainda mais as mulheres, reforçando uma exclusão histórica e dificultando sua participação plena nas atividades agrícolas.

Quintais Produtivos

O programa Quintais Produtivos das Mulheres Rurais, lançado em setembro de 2023, é uma iniciativa do governo brasileiro que visa promover a autonomia econômica das mulheres rurais por meio da estruturação de quintais produtivos. 

Coordenado pelos Ministérios do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome (MDS) e do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar (MDA), em parceria com o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), o programa tem como meta implementar 92 mil quintais produtivos até 2026. 

Os quintais produtivos são espaços próximos às residências rurais, tradicionalmente manejados por mulheres, destinados à produção de alimentos, criação de pequenos animais e conservação da biodiversidade. 

O programa busca fortalecer esses espaços, fornecendo fomento para a aquisição de insumos e equipamentos, assistência técnica e apoio à comercialização da produção. 

Além disso, a iniciativa visa articular as mulheres em grupos ou organizações coletivas, auxiliá-las no acesso a políticas públicas de apoio à produção e comercialização de alimentos e promover tecnologias sociais de acesso à água, como cisternas. 

O objetivo é integrar ações que garantam soberania alimentar, produção sustentável e geração de emprego e renda, destacando a força da mulher no campo. 

O programa também está alinhado com outras políticas públicas, como o Programa de Fomento às Atividades Produtivas Rurais e o Programa Nacional de Apoio à Captação de Água de Chuva e Outras Tecnologias Sociais de Acesso à Água, visando uma abordagem integrada para a promoção da segurança alimentar e nutricional.

Relações de Gênero e Agricultura Familiar

No artigo intitulado “Relações de Gênero e Agricultura Familiar“, Miriam explora as dinâmicas de gênero no contexto da agricultura familiar no Brasil e suas implicações sociais e econômicas. A autora destaca como a divisão sexual do trabalho é naturalizada, atribuindo aos homens as tarefas produtivas e às mulheres as reprodutivas, perpetuando hierarquias e desigualdades.

Miriam questiona a visão tradicional que negligencia as contribuições femininas ao trabalho rural, geralmente classificadas como “ajuda”. Ela observa que, embora as mulheres realizem atividades essenciais, como a produção de leite e o manejo de pequenas criações, suas tarefas são desvalorizadas e excluídas das decisões econômicas e administrativas das propriedades.

O texto também aborda as transformações em curso nos movimentos de mulheres rurais, que buscam reconhecimento público e direitos trabalhistas, como previdência e crédito agrícola. Contudo, as mudanças enfrentam resistências culturais e estruturais, tanto no âmbito familiar quanto institucional.

Ela conclui que o fortalecimento da autonomia feminina na agricultura familiar requer mudanças estruturais, que vão desde a valorização do trabalho até a criação de políticas públicas que garantam equidade de gênero.

Soberania e tecnologia sob a ótica da sustentabilidade da vida

O uso de tecnologia sob uma perspectiva popular é abordado no documento “Pistas feministas para construir soberania tecnológica a partir dos movimentos populares”, elaborado Sempreviva Organização Feminista (SOF), com base em contribuições de movimentos sociais aliados, incluindo a Marcha Mundial das Mulheres (MMM). 

O material foi desenvolvido a partir de um mapeamento realizado junto a organizações e movimentos sociais da América Latina, com foco em temas como soberania tecnológica, sustentabilidade da vida e justiça social. Além disso, foram utilizadas fontes públicas disponíveis na internet, como cartilhas, vídeos, textos e publicações em redes sociais.

O texto aborda a ideia de soberania popular, alinhada a princípios feministas e decoloniais, para priorizar a sustentabilidade da vida e a autodeterminação dos povos, desafiando estruturas de poder coloniais e capitalistas.

A Marcha Mundial das Mulheres, da qual Miriam Nobre participa, destaca a soberania sobre corpos, territórios e sistemas sociais como pilares de transformação, vinculando essa luta à soberania alimentar e energética. 

Esses conceitos vão além do consumo e produção suficientes; eles buscam o controle popular sobre o que, como e por quem os recursos são distribuídos, enfrentando o agronegócio e projetos de infraestrutura que ameaçam a diversidade e os modos de vida sustentáveis.

A relação entre soberania e tecnologia também é explorada. Movimentos sociais questionam a narrativa de neutralidade das tecnologias corporativas, propondo alternativas democráticas e acessíveis. 

A luta por tecnologias feministas e emancipadoras desafia regimes de opressão e exclusão histórica, especialmente aqueles que invisibilizam saberes ancestrais e marginalizam populações do Sul Global.

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