Por Nalu Faria*, originalmente publicado na Carta Capital
A luta contra a violência machista ganha a cada dia uma dimensão mais ampla. No Brasil, há mais de 40 anos ecoam as vozes das mulheres dizendo “quem ama, não mata, não humilha e não maltrata”.
A força da luta e da mobilização faz com que cada vez mais mulheres denunciem e se organizem em prol de uma vida sem violência. Foi com essa energia que se realizaram as mobilizações na Argentina, em junho de 2015, contra o feminicídio, sob o lema “Nenhuma a menos, vivas nos queremos”.
Os protestos ao feminicídio de Lucía Pérez, ocorrido em Mar del Plata logo após o 31 Encontro Nacional de Mulheres Argentinas, alcançaram uma escala muito maior, cujo marco foi o dia 19 de outubro do mesmo ano, com greve de mulheres e ações simultâneas em vários países.
No Brasil, iniciamos 2017 em luta por nenhuma a menos, em resposta ao feminicídio em forma de Chacina em Campinas, que nitidamente foi uma reação patriarcal ao feminismo e a autonomia das mulheres.
A categoria “femicídio” ou “feminicídio” ganhou espaço no debate latino-americano a partir das denúncias de assassinatos de mulheres em Cidade Juarez, no México, onde, desde o início dos anos 1990, práticas de violência sexual, tortura, desaparecimentos e assassinatos de mulheres têm se repetido em um contexto de omissão do Estado e consequente impunidade para os criminosos, conforme denúncia de ativistas políticas.
A partir de um debate impulsionado pela ONU Mulheres, vários países promulgaram leis de tipificação do feminicídio, com o objetivo de dar mais efetividade à punição dos assassinatos das mulheres.
O movimento feminista compreende a violência machista como algo estrutural e questioná-la é também questionar o modelo capitalista, patriarcal, racista, homo-lesbofóbico e colonialista.
Portanto, há um posicionamento antissistêmico, que supera a análise centrada na punição, muitas vezes enfatizada em discursos e propostas institucionais.
É notável que há uma resposta coletiva das mulheres após quase três décadas de imposição de um debate antifeminista pautado pela era Reagan/Thatcher – processo que ficou conhecido nos países do Norte como o retrocesso (backlash).
A partir desse retrocesso, o neoliberalismo impôs uma visão de que as mulheres teriam êxito na vida se fossem competentes e competitivas no mercado.
Junto a isso, o neoliberalismo utilizou justamente o reconhecimento dos direitos das mulheres nas convenções internacionais – cujos marcos foram a Conferência de Cairo em 1994 e de Beijing em 1995 – para, a partir daí, produzir um discurso triunfalista.
Tratava-se de um discurso alimentado pelas novas possibilidades oferecidas pelo mercado: eterna juventude, beleza, corpo perfeito. Nessa perspectiva, as mulheres poderiam comprar o necessário para estar dentro do padrão de feminilidade adequado.
Na América Latina e Caribe, a partir da luta contra o neoliberalismo e o livre comércio, se construiu uma nova ofensiva feminista a esse discurso.
O crescimento da ação feminista desde o início dos anos 2000, somado à percepção de que as promessas neoliberais não se cumpririam, fizeram explodir uma expansão da consciência feminista, que pode ser identificada até nos discursos das atrizes de Hollywood, diretoras de cinema, cantoras, mas sobretudo no fortalecimento de diversos movimentos de mulheres e em uma proliferação de coletivos feministas nas redes sociais, nas periferias, nas universidades e nas escolas de ensino Médio e Fundamental.
Provavelmente ainda não conhecemos grande parte desse processo, que segue em curso.
Isso explica a capilaridade e a capacidade de realização de ações simultâneas, para as quais a campanha com o mote “nenhuma a menos, vivas nos queremos” é um exemplo importante hoje na América Latina e Caribe.
Políticas Públicas para as mulheres na América Latina e Caribe
Foi a partir da emergência da chamada segunda onda do movimento feminista aqui na região, a partir de meados dos anos 70, que há a construção de uma agenda política de caráter feminista.
É preciso destacar o papel que a ONU exerceu, após parte das agendas feministas nos países do Norte terem se institucionalizado e se voltado para a demanda por políticas públicas.
Um marco nesse processo foi a I Conferência Mundial das Mulheres, ocorrida no México em 1975, quando foi decretado o Ano Internacional da Mulher.
Esse fato teve grande repercussão na América Latina e no Caribe, principalmente considerando o contexto de ditaduras que assolavam a região. Em razão dessa vinculação com a ONU, em vários países foi possível organizar atividades públicas sobre o tema.
Durante os anos 2000, no período conhecido como dos governos progressistas, houve mudanças em vários países, em geral marcados pela maior institucionalização dos organismos de mulheres, onde se destaca o patamar ministerial.
A participação nos espaços das Nações Unidas e o compromisso com a Comitê para a Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (CEDAW) também cumpriram um papel de referência, embora com diferentes nuances, de acordo com o contexto.
Nos anos 90, sob forte hegemonia do neoliberalismo, o Banco Mundial cumpriu um forte papel na formulação das políticas de alívio à pobreza e inclusive de financiamento de programas focais em diversos países.
Já nos anos 2000, no ciclo dos governos progressistas, a CEPAL cumpre um papel de maior protagonismo e o Banco Mundial deixou de ser um ator relevante em relação a políticas para as mulheres.
Nos anos recentes, aparecem as propostas construídas no âmbito do diálogo com setores da sociedade civil e a União Europeia, tanto em processos de elaboração de prioridades a partir dos espaços institucionais, nas cúpulas ibero-americanas, Eurolat, como também em convênios com vários governos.
O combate à violência é o tema em que mais se desenvolveu políticas públicas na região latino-americana e caribenha. Não foi um debate e um trajeto linear, e é possível identificar períodos em que a perspectiva feminista esteve bastante diluída.
Por exemplo, quando, nos anos 90, a violência foi tratada como intrafamiliar – este foi, inclusive, o marco referencial para as leis em alguns países.
Nesse momento, ganhou destaque a necessidade de que os homens fossem atendidos nos centros de referência e apoio às mulheres, reforçando a ideia de que a violência seria um problema de saúde mental, e não de relações de poder e controle.
Certamente essa visão encontrou muita resistência em setores do feminismo, que compreendem a violência machista como resultado do patriarcado e de relações de poder e posse dos homens sobre as mulheres. Ainda hoje, porém, aquela visão persiste em certos setores.
Na América Latina e Caribe, ainda há que se analisar a extensão das mudanças nos últimos anos. A partir dos governos progressistas se implantou políticas públicas mais amplas e de maior alcance na cobertura e universalização, como a transferência de renda, mas também de emprego, de saúde e educação.
Isso impactou a abordagem dos organismos multilaterais, por exemplo a ONU Mulheres, que hoje aborda o tema da autonomia, e a CEPAL, ao discutir a questão dos cuidados.
Do lado do movimento feminista há um amplo posicionamento de que é necessário combater as causas da violência. A questão de fundo, nestes casos, é o debate das mudanças nas relações sociais, da construção da igualdade e de envolver o conjunto da sociedade para que a violência machista seja considerada algo inaceitável por todas e todos.
*Nalu Faria é coordenadora da SOF Sempreviva Organização Feminista e integra o Comitê Internacional da Marcha Mundial das Mulheres. Integrante do Grupo de Reflexão sobre Relações Internacionais/GR-RI.