Por Miriam Nobre para o Brasil de Fato*
Nos tempos da ditadura no Brasil (1964-1984), havia uma chamada que dizia: “Nenhuma noite de terror pode atrasar o dia”. Situações extremas como as que vivemos hoje, com a pandemia de coronavírus e a necropolítica do governo Bolsonaro, nos dão a sensação de estarmos presas no presente, sem memória nem horizonte de futuro.
Talvez seja por isso que, cada vez mais nas reflexões da SOF – Sempreviva Organização Feminista sobre economia feminista, agroecologia, trabalho ou corporações transnacionais, a organização e o controle (por quem?) do tempo sejam, mais do que apenas relevantes, uma questão estruturante da sociedade atual e, por isso, também das transformações que buscamos. Nessa mesma toada, saudamos com especial interesse duas publicações lançadas no final de 2020 que colocam em questão o debate sobre o tempo.
A dinâmica do relógio
Em muitas atividades de formação, para debater a divisão sexual do trabalho (que separa o que são trabalhos de mulheres e de homens e os hierarquiza, conferindo maior prestígio e remuneração aos trabalhos dos homens), utilizamos a dinâmica do relógio. Nela, as pessoas participantes registram uma jornada diária de uma mulher e de um homem, para depois debater coletivamente as semelhanças e diferenças. Inevitavelmente chegamos à sobrecarga das mulheres, as primeiras que se levantam e as últimas que dormem em um dia de atividade contínua.
As pesquisas sobre usos do tempo chegam a resultados semelhantes, evidenciando a divisão sexual do trabalho por meio de questionários. Na Pesquisa Nacional por Amostragem Domiciliar (PNAD), do IBGE, há perguntas sobre envolvimento, horas dedicadas e tipo de atividade relacionadas a afazeres domésticos e de cuidados, por exemplo. Também há pesquisas que propõem diários nos quais as pessoas acompanhadas registram o tempo de atividades pré-definidas.
A arte de tecer o tempo
O livro A arte de tecer o tempo: perspectivas feministas, organizado por Hildete Pereira de Melo e Lorena Lima de Moraes, resgata o percurso das pesquisas de usos do tempo no Brasil, suas contribuições para a percepção do trabalho não remunerado, sua relação com o trabalho remunerado, o trabalho doméstico e de cuidados, sua consideração em contas-satélites, tornando nítida a sobrecarga e pobreza de tempo das mulheres. O ponto inicial desse caminho é uma merecida homenagem a Neuma Aguiar, socióloga e feminista que provocou e publicizou o debate sobre o trabalho das mulheres na América Latina desde o final dos anos 1970.
No livro, acompanhamos desde análises das variáveis sobre tempo dedicado a afazeres domésticos e de cuidados da PNAD até inquietudes em relação à capacidade dessa pesquisa de captar a realidade. Estudos realizados com mulheres rurais demonstram que elas dedicam muito mais horas dos que as registradas pela PNAD e podem indicar maiores discrepâncias em relação aos homens rurais e às mulheres urbanas. Mais do que isso, os estudos trazem diferentes apropriações do tempo-relógio entre trabalhadoras agrícolas, criando múltiplas relações espaço-tempo, que variam se as mulheres moram no interior das usinas, em sítios ou áreas periurbanas.
Os textos apontam diferentes temporalidades: para as mulheres rurais, a separação entre trabalho remunerado e não remunerado não explica a organização do seu tempo. A natureza segue tendo importância na marcação dos tempos (o ciclo do sol e das estações organizando as tarefas) e se combina ao tempo-relógio (marcado, por exemplo, no período em que as crianças estão na escola e nos horários do ônibus escolar).
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Sobreposição de tempos
Outra questão é a sobreposição dos tempos. Em geral, nos estudos sobre uso do tempo, a orientação para o registro em diário de atividades simultâneas demanda que a pessoa defina atividade principal e secundária. No estudo realizado no Sertão do Pajeú, a decisão foi de registrar todas as atividades e seus tempos sem hierarquia, para valorizar todos os trabalhos e demonstrar a intensidade da jornada, que é tão importante quanto a sua extensão.
Mais de uma vez, nas oficinas da SOF, o relógio das mulheres se tornava uma espiral, em vez de se fechar em um círculo. A reflexão aprofundada sobre o tempo de mulheres rurais nordestinas e ribeirinhas amazônicas que o livro traz nos possibilita pensar sobre o tempo intenso/extenso organizado pelas novas formas de apropriação capitalista do trabalho, mas também sobre o tempo reconquistado para si, vivido em sintonia com a natureza e processos comunitários.
Apropriar-se do próprio tempo
Por aí vai o artigo “O tempo de nossas vidas: reflexões sobre trabalho e temporalidade”, do historiador canadense Bryan Palmer. Ele propõe que a história da luta de classes pode ser pensada como a luta dos trabalhadores para se apropriarem de seu tempo. A transformação das pessoas em trabalhadoras para o capital tem como premissa seu disciplinamento e a assimilação do tempo-relógio. O tempo deixa de ser aquele associado aos ciclos naturais, e passa a estruturar-se pelos imperativos do capital. A invenção e disseminação do relógio é tão importante para o avanço do capitalismo quanto o tear mecânico.
As lutas pela redução da jornada do trabalho e o conflito em torno do controle do tempo tiveram enorme expressão na organização da classe trabalhadora. Em meados do século XIX, comitês pela redução da jornada e ligas por 10h, 9h e finalmente 8h tornaram-se sinônimos de mobilização operária. Também as mulheres desde sempre também consideravam o tempo necessário para a reprodução da vida. Em uma assembleia da greve de 1913 que mobilizou 25 mil trabalhadoras têxteis, a maioria imigrantes, em Paterson, nos Estados Unidos, as mulheres reagiram desaprovando o discurso de um dirigente que brincou que uma jornada de trabalho menor resultaria em mais bebês.
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Jornadas de trabalho
Com a mais-valia (tempo de trabalho incorporado na mercadoria e apropriado pelos capitalistas) nunca existirá salário justo. Sem limite para o dia de trabalho, sem limite para a mais-valia. O contínuo e crescente desenvolvimento das forças produtivas e o aumento da produtividade do trabalho, embora resultem em menos horas para o trabalho necessário à reprodução social, não implicaram em jornadas de trabalho menores. Pelo contrário, as jornadas extensas que caracterizariam o começo do capitalismo estão hoje presentes nas oficinas de costura no Brás, em São Paulo, ou em Toritama, Pernambuco, mas também na Walmart, em seu país sede, os Estados Unidos. Os avanços tecnológicos da digitalização significaram um maior controle sobre as horas e a demanda pela disponibilidade total do tempo das trabalhadoras e trabalhadores. As “horas livres”, que sempre foram mobilizadas para o disciplinamento, agora são também mercadoria para o consumo da indústria do entretenimento.
O autor conclui que a possibilidade de recuperarmos nosso tempo só é possível pelo desmonte das relações de trabalho assalariadas capitalistas e das novas formas de subjugação da força de trabalho disfarçadas em fantasias de empreendedorismo. E vai além, nos propondo um “entendimento inteiramente novo do tempo, que recusa o significado dos minutos, horas e dias inventado por aqueles segmentos do capital que tiveram poder o bastante para controlá-lo”.
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Direito ao tempo
Em 2020, durante uma reflexão da SOF com a Coletiva XXK – Feminismos, Pensamento e Ação, do País Basco, nos perguntamos: valeria a pena começar a falar de um direito ao tempo? As chaves desse direito seriam a redistribuição dos tempos (questionar a centralidade do emprego, mas também afirmar o direito coletivo ao cuidado) e a recuperação dos tempos, resistindo ao que o sistema nos impõe, rompendo com a culpa e o produtivismo e construindo coletivamente outras formas de organizar a vida.
Em 2021, a terra vai girar mais rápido, e os dias serão mais curtos. Uma hipótese é que o aquecimento global e o consequente derretimento das calotas polares e gelo das montanhas contribuíram para acelerar essa movimentação. O horizonte é desacelerar a máquina produtiva para aproximar os tempos da vida e da natureza. Não é pouco.
*Miriam Nobre integra a equipe da SOF Sempreviva Organização Feminista.
** A Coluna Sempreviva é publicada quinzenalmente às terças-feiras. Escrita pela equipe da SOF Sempreviva Organização Feminista, ela aborda temas do feminismo, da economia e da política no Brasil, na América Latina e no mundo.
Edição: Camila Maciel