Por Helena Zelic e Natália Blanco*
Originalmente publicado no Brasil de Fato
Por todo o mundo, os povos enfrentam uma fase ainda mais ofensiva do neoliberalismo, que ataca as democracias e tudo o que é público e comum, pressionando por privatizações, financeirização e vigilância. Na América Latina, a violência é sustentada por séculos de ocupação colonial e imperialismo.
As corporações transnacionais e seus projetos extrativistas de apropriação física e cultural atualizam e perpetuam as guerras contra os povos, contra as mulheres e contra modos de vida que desviam do controle heteropatriarcal, capitalista e racista.
Diante dessa dinâmica de destruição, as mulheres, enquanto sujeito político coletivo, propõem formas de resistência e também alternativas para sustentar a vida humana e a natureza. Assim, nos territórios e nos movimentos sociais, as mulheres potencializam as lutas ao combinar críticas e propostas. As respostas articuladas pela perspectiva feminista conectam ação e reflexão e apontam para uma necessidade de transformação sistêmica.
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É nesse sentido que a economia feminista e a perspectiva ambientalista são ferramentas políticas fundamentais. A economia feminista amplia o entendimento da economia para além dos números e do que circula no mercado, e amplia a noção do que é trabalho para além do que é remunerado / “produtivo”.
Assim, dá a centralidade necessária para todo o trabalho de cuidado necessário para garantir a vida – recusando explicações essencialistas sobre o porquê dessa esfera ser relegada às mulheres. Compreendendo que somos, todas as pessoas, interdependentes e ecodependentes, a economia feminista enfatiza a necessidade de uma ruptura, de uma reorganização social que priorize a sustentabilidade da vida humana e não humana.
O ambientalismo popular e a luta por justiça ambiental são vitais para a economia feminista e vice-versa. São ferramentas para a crítica a este modelo de produção que destrói a biodiversidade, as ancestralidades, os modos de vida comunitários.
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E são, também, necessários para a construção de um novo mundo que seja realmente novo, sem limitar-se às falsas soluções e a uma concepção de desenvolvimento pautada pelo mercado.
A economia feminista e o ambientalismo estão em construção permanente e cotidiana, pelas mãos, vozes e ouvidos atentos das mulheres do campo e da cidade, do povo negro, dos movimentos sociais. Essas são formas de ampliar a visão crítica sobre economia e sobre sociedade, e formas também de aproximar essas dimensões que não devem ser apartadas.
Por tudo isso, há um esforço de registrar e compilar as experiências e reflexões das mulheres em movimento: por tudo o que elas acumulam e podem ensinar, pelos caminhos que apontam, pelo contato entre o que há de semelhante e diferente. O intercâmbio e a conexão entre mulheres de diversas partes do mundo, vinculando o local e o global, são práticas políticas de formação e de transformação, elementos que caminham juntos.
Foi nessa toada que a SOF participou, no mês de novembro, da elaboração de duas publicações sobre esses temas. A primeira foi Economia Feminista e Ambientalismo Para Uma Recuperação Justa: Olhares do Sul, da Marcha Mundial das Mulheres, da Amigos da Terra e da REMTE Rede Mulheres Transformando a Economia, publicada em português, espanhol, inglês e francês.
A segunda, lançada no último dia 30, chama-se Cultivar a Vida em Movimento: Experiências de Economia Feminista na América Latina, uma publicação da SOF em português e espanhol, com colaboração da MMM e da REMTE, organizada por Miriam Nobre, Nalu Faria e Tica Moreno.
Cultivar a vida em movimento
Nesta coletânea de textos foram registrados processos protagonizados por mulheres na América Latina que combinam auto-organização, solidariedade e luta social. A solidariedade mobiliza a reciprocidade, e é uma resposta às falhas estruturais do capitalismo, às quais tantas pessoas são submetidas, e que se agravam ainda mais em situações de guerra, emergências sociais, climáticas e sanitárias, como vivemos agora com a pandemia da covid-19.
A publicação reúne experiências de oito territórios diferentes que mostram a potência da agroecologia, da agricultura urbana, da formação popular, das práticas ambientalistas e das formas de organização econômica alternativas. As experiências relatadas em Cultivar a Vida em Movimento evidenciam que “a dinâmica da exploração pode se manifestar de formas diversas e não convencionais nos territórios, mas o objetivo é único e bem articulado: manter uma divisão espacial e internacional do trabalho, fundada no saqueio do corpo-território-memória, sobretudo das mulheres”.
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E é nos corpos-territórios-memórias das mulheres insurgentes que encontramos os caminhos para novos modelos de sociedade.
“Enquanto o capitalismo insiste em ditar uma única visão sobre o que é economia e como ela deve se organizar, baseando-se no mercado como único princípio vigente, a economia feminista mostra o contrário. Existem muitas economias que se orientam pela redistribuição e pela reciprocidade, especialmente no âmbito comunitário, visando o bem comum das pessoas e da natureza.”
Economia feminista e ambientalismo para uma recuperação justa
Economia Feminista e Ambientalismo é uma publicação que sistematiza as discussões levadas pelas conferencistas Nalu Faria e Karin Nansen e pelas demais participantes do webinário internacional de mesmo nome, que aconteceu durante o Fórum Social Mundial de Economias Transformadoras.
Estavam presentes mais de 100 pessoas, vindas de todas as regiões do mundo, para debater a construção de uma recuperação justa, de saídas transformadoras para romper com a crise sistêmica que vivemos hoje. A atividade gravada ainda pode ser vista no YouTube da Marcha Mundial das Mulheres do Brasil ou no site da Radio Mundo Real.
As intervenções das e dos participantes apontaram para a necessidade uma mudança de sistema, relacionada com a construção da soberania alimentar, da convergência dos movimentos sociais em unidade internacionalista, do fortalecimento e articulação das experiências locais, da reafirmação do público e da desmercantilização da vida.
“A recuperação justa passa por uma ruptura total com este modelo heteropatriarcal, capitalista, racista, colonialista e destruidor da natureza. Portanto, a nossa resposta também tem que ser integral e apontar uma ruptura da lógica do capital e a construção com outro modelo”, aponta Nalu Faria no primeiro capítulo da publicação.
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Diante da pandemia do coronavírus, não faltam sujeitos apontando falsas soluções, propostas injustas e limitadas, maquiadas de bom mocismo. Percebendo isso, o debate reunido nessa publicação busca apontar caminhos que vão além de estabilizar o que se chama de “novo normal”. O texto de Karin Nansen é categórico nesse sentido:
A recuperação não pode ser um retorno ao que foi considerado normal, porque ele representa, precisamente, a origem da crise (…). Precisamos reverter isso e avançar em direção à justiça em todas as suas dimensões – ambiental, social, econômica e de gênero – e também em direção à construção e fortalecimento da soberania de nossos povos e do poder popular, o poder dos nossos povos de tomar decisões.
Compartilhamento e coletividade para transformar a sociedade
Aliança e construção coletiva do conhecimento. Compartilhamento e intercâmbio dos processos econômicos das mulheres em movimento. Registro, elaboração e memória. Cuidado permanente da vida. Esses são processos e práticas políticas que fortalecem a auto-organização das mulheres e de todos os sujeitos envolvidos nas lutas por transformação social.
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As duas publicações que mencionamos foram disponibilizadas de maneira livre e gratuita na internet, e essa é também uma opção política. Elas reverberam ações e estratégias políticas de uma luta organizada nos territórios e globalmente, nas redes, nas ruas e nos roçados.
*Helena Zelic e Natália Blanco fazem parte da equipe da SOF Sempreviva Organização Feminista.